Cientista Social e mestra em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Científica Social y Maestra en Antropología por la Universidad Federal de Minas Gerais.
El Dr. Glauber Loures de Assis es Doctor en Sociología por la Universidad Federal de Minas Gerais (UFMG) e Investigador Asociado del Grupo Interdisciplinario de Estudios Psicoactivos (NEIP) en Brasil. Sus principales intereses incluyen las religiones ayahuasqueras, los nuevos movimientos religiosos, la internacionalización de las religiones brasileñas, el uso de drogas en la sociedad contemporánea y la paternidad psicodélica. Es autor de numerosos artículos y capítulos de libros, y coeditor del libro Women and Psychedelics: Uncovering Invisible Voices (Synergetic Press/Chacruna Institute, en prensa). Glauber es también un practicante de ayahuasca con 15 años de experiencia. Ha construido esta práctica en diálogo con su comunidad local de ayahuasca brasileña y con la bendición de ancianos y activistas indígenas de Brasil. También es el líder de Jornadas de Kura, un centro de medicina vegetal en Brasil. Es padre de 3 hijos y vive con su esposa Jacqueline Rodrigues en Santa Luzia, Minas Gerais, Brasil.
A história das religiões costuma ser contada como uma história de grandes homens. Mas a história das religiões não foi construída somente por homens. Foi construída também através da luta, do suor, do sofrimento e das conquistas de muitíssimas mulheres.
A história das religiões costuma ser contada como uma história de grandes homens.
Mas a história das religiões não foi construída somente por homens. Foi construída também através da luta, do suor, do sofrimento e das conquistas de muitíssimas mulheres.
Mulheres essas que, a despeito de seus méritos, talentos e trajetórias incríveis de vida, muitas vezes foram silenciadas e invisibilizadas, inclusive na academia.
Falar sobre religiões a partir de uma perspectiva decolonial, academicamente rigorosa e aliada à justiça social, passa, necessariamente, por contar a história dessas mulheres e visibilizar sua agência e seu protagonismo.
E isso também vale igualmente para o estudo e a compreensão da evolução social do uso de plantas psicodélicas.
Pensando nessas questões urgentes e importantíssimas, esse artigo vai contar um pouco da história de uma mulher que fez a diferença no uso religioso da ayahuasca no Brasil e na expansão de seu consumo a partir da religião do Santo Daime: a Madrinha Rita Gregório.
Da seca do Nordeste à sociedade seringalista: Uma soldado da borracha.
Rita Gregório de Melo nasceu em 25 de junho de 1925, na zona rural do estado do Rio Grande do Norte, no Nordeste brasileiro.
Assim como ocorreu com a grande maioria dos nordestinos desse tempo, sua família não tinha terra própria, nem gado, nem posses.
Rita e seus pais trabalhavam como humildes pescadores e camponeses, em plantios de feijão, milho, melancia, carnaúba (Copernicia serifera), dentre outros. E assim permaneceram até o início da década de 1940 (santodaime.org).
Nesse período, com a emergência da Segunda Guerra, os seringais da Malásia, formados a partir da biopirataria de sementes de seringueira responsável pelo colapso da economia da borracha na Amazônia, foram perdidos, e a produção de borracha no Brasil foi impulsionada pela necessidade de suprimento para as tropas “aliadas”.
Por isso, milhares de nordestinos foram recrutados para irem para a floresta com a promessa de melhores condições de vida. Tal movimento ficou conhecido como “batalha da borracha”, e os imigrantes que participaram desse processo, “soldados da borracha” (santodaime.org).
Em 1944, Madrinha Rita e sua família fizeram parte desse grupo, e embarcaram rumo à Amazônia, chegando até os ermos do Vale do Juruá, onde se instalaram em um seringal.
Ali, Rita conheceu Sebastião Mota de Melo, o Padrinho Sebastião (um grande responsável pela expansão internacional do Santo Daime), com quem se casou ainda na década de quarenta e com quem teve 11 filhos (Mórtimer, 2019).
Seus filhos Alfredo e Valdete, aliás, ainda hoje estão entre as maiores lideranças mundiais do Santo Daime.
Nos tempos de seringal, Madrinha Rita cuidava dos trabalhos domésticos, sendo responsável, além da educação dos filhos, também pela criação de animais domésticos, preparação de alimentos e costura das roupas, dentre outras atividades.
Tal como acontece nos grandes centros urbanos do século XXI, é absolutamente impossível pensar na construção das famílias do seringal e na manutenção da atividade produtiva da economia seringalista sem a agência decisiva de mulheres no trabalho doméstico não remunerado e na sustentação de toda economia.
Não foram poucas as vezes que Rita precisou dar conta sozinha de toda a atividade doméstica e do cuidado dos filhos. E tudo isso sem eletrodomésticos, sem saneamento básico, sem serviços do Estado, sem luz elétrica e sem segurança contra potenciais invasores. Algo difícil até de imaginar para nossos padrões ocidentais da sociedade de consumo atual.
Como Sebastião precisava sair para caçar e pescar em empreitadas que podiam durar vários dias, não foram poucas as vezes que Rita precisou dar conta sozinha de toda a atividade doméstica e do cuidado dos filhos. E tudo isso sem eletrodomésticos, sem saneamento básico, sem serviços do Estado, sem luz elétrica e sem segurança contra potenciais invasores. Algo difícil até de imaginar para nossos padrões ocidentais da sociedade de consumo atual.
Com a vida difícil no seringal, Rita e Sebastião se mudaram com a família para Rio Branco, capital do Estado, no ano de 1957. Um árduo percurso, que levou muitas semanas, em situações precárias de transporte, que envolveu longas caminhadas durante vários dias com crianças no colo e sol escaldante (Mórtimer, 2019).
O encontro com o Mestre e a expansão do Santo Daime
Em Rio Branco, Rita e Sebastião passaram a morar na chamada “Colônia Cinco Mil”, que futuramente viria a ser um pólo para a expansão nacional do Santo Daime, onde se dedicaram à lavoura e à criação de animais.
Já no ano de 1965, Rita teve a oportunidade de conhecer pessoalmente Raimundo Irineu Serra, homem preto maranhense neto de pessoas escravizadas que fundou o Santo Daime, após uma cura recebida por seu marido no ritual de Mestre Irineu.
Tendo sido socializada em um ambiente hostil à liberdade das mulheres, em meio a uma família de trabalhadores de classe baixa a religiosidade evangélica no cenário de seca do nordeste e da sociedade seringalista, Rita era tímida, e ficou com vergonha de se aproximar do Mestre Irineu, que sempre vivia rodeado de pessoas (Mendonça Pinto, 2021).
Foi necessário, para se aproximar do Mestre, que essa timidez fosse superada (superação essa que precisou ser exercida inúmeras vezes e em situações muito diversas para que Rita fosse reconhecida como a grande liderança que é). E foi assim que Rita conheceu Mestre Irineu, em um encontro que transformou a sua vida e definiu os rumos de sua existência e de seu trabalho comunitário e espiritual.
A partir daí, Rita, juntamente com seu marido, ingressou na religião do Santo Daime, e passou a ser uma liderança nos atendimentos espirituais realizados na Colônia Cinco Mil, que sempre recebia muitas pessoas em busca de cura e alento, incluindo crianças e também mulheres grávidas em procura de acompanhamento no parto de seus filhos, uma tradição que desde então vem sendo desenvolvida e aprimorada por ela e por suas companheiras.
Após o falecimento de Mestre Irineu, seus seguidores Rita e Sebastião se tornaram referências importantes na continuidade do trabalho do Mestre, e passaram a congregar em torno de si e de seu trabalho um número cada vez maior de pessoas. Passaram a ser conhecidos, doravante, como “Madrinha” Rita e “Padrinho” Sebastião, uma forma carinhosa de reconhecimento pela dedicação que devotavam às pessoas que os procuravam.
O trabalho de Rita e Sebastião sem dúvidas foi o grande propulsor e mantenedor, até os dias de hoje, da expansão do Santo Daime para além das fronteiras amazônicas e para os centros urbanos do Brasil e de outros países.
Em meados da década de 1970 fundaram o CEFLURIS – Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra. Embora seja importante notar que o Daime é uma religião heterogênea representada também por outros seguimentos (como o Alto Santo, liderado por uma mulher, a Madrinha Peregrina Gomes Serra, viúva de Mestre Irineu e também uma importante matriarca), o trabalho de Rita e Sebastião foi o grande propulsor e mantenedor, até os dias de hoje, da expansão do Santo Daime para além das fronteiras amazônicas e para os centros urbanos do Brasil e de outros países.
Uma mulher à frente de seu tempo
A maneira de Rita e Sebastião vivenciarem a experiência religiosa foi marcada também, desde o início, pela abertura à diversidade. O acolhimento a pessoas de diferentes perfis socioeconômicos e culturais e também à experimentação de psicodélicos e à incorporação de novas práticas e símbolos à sua experiência ritual sempre foi uma marca registrada do casal, que certamente pensava a frente de seu tempo, em um momento em que o Brasil ainda vivia o fantasma da ditadura militar.
Outra marca registrada de ambos era a vivência comunitária, que incluía também a produção e distribuição compartilhada de alimentos, com o objetivo de construção de espaços de convivência e promoção de formas de solidariedade que escapavam ao sistema econômico exploratório vigente.
Como dizem suas seguidoras, Madrinha Rita sempre teve a característica de receber e abraçar os menos favorecidos, e sempre foi muito sincera em sua demonstração de empatia e amor ao rebelde, àquele que desagrada, e altruísta na dedicação de boa parte de seu tempo em atenção às “ovelhas negras” da comunidade e da sociedade.
Outro traço característico da Madrinha Rita é sua confiança inquebrantável nas causas que abraça e no trabalho espiritual de expansão do Santo Daime.
Veio dela a calma e a tranquilidade para abençoar a expansão dos trabalhos daimistas nas grandes metrópoles brasileiras em um período histórico aonde o estigma social ligado ao consumo de psicodélicos era ainda muito maior do que é hoje, e o amparo legal para utilização da ayahuasca era bastante precário.
Veio dela a calma e a tranquilidade para abençoar a expansão dos trabalhos daimistas nas grandes metrópoles brasileiras em um período histórico aonde o estigma social ligado ao consumo de psicodélicos era ainda muito maior do que é hoje, e o amparo legal para utilização da ayahuasca era bastante precário.
Não menos interessante foi sua abertura para a inserção do uso da Santa Maria (Cannabis sativa) nas cerimônias religiosas do Santo Daime, do qual há várias décadas é uma das principais zeladoras e mantenedoras do caráter ritual de sua utilização.
No início da década de 1980, Madrinha Rita abandonou toda a estrutura que às duras penas havia conseguido montar em Rio Branco, para acompanhar Sebastião rumo à construção de um projeto comunitário no coração da floresta Amazônica. Nasceu daí o Céu do Mapiá, comunidade daimista localizada na Floresta Nacional do Purus, há várias horas de barco de distância da cidade mais próxima, e que com cerca de 1000 moradores é ainda hoje o maior grupo daimista do mundo, considerada uma espécie de Meca pelos seus adeptos.
Ainda nessa década, juntamente com Sebastião e seus filhos, Rita (cujas irmãs Tetê e Júlia também tiveram um papel importante na história do Santo Daime) passou a exercer o papel de embaixadora mundial do Santo Daime, viajando para diversas localidades para instruir as pessoas sobre a cultura e liturgia daimistas e acolher seus afilhados.
No ano de 1990, contudo, Padrinho Sebastião faleceu, e a partir daí coube à Rita a tarefa de seguir o zelo da doutrina do Santo Daime e sustentação de toda a comunidade daimista e seus milhares de adeptos ao redor do mundo.
Embora seus filhos Alfredo e Valdete tenham sido empoderados como lideranças internacionais (o primeiro é presidente do conselho superior doutrinário da ICEFLU – Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal, e o segundo é o comandante geral dos trabalhos), é sabido que ambos devotam grande obediência e prestam deferência à madrinha Rita como matriarca da doutrina.
Seu papel na coesão social e resolução de conflitos sociais, familiares e políticos no Céu do Mapiá, por exemplo, é fundamental e absolutamente inconteste. E é ali, em meio ao ar puro da floresta e aos mosquitos causadores de malária (doença que já acometeu Rita dezenas de vezes), que Rita mora e continua, com seus quase 97 anos de idade, zelando por seus afilhados e afilhadas todos os dias.
Sendo hoje uma anciã, Madrinha Rita não costuma mais ir à igreja ou fazer visitas às casas das pessoas. Como a Madrinha não pode fisicamente chegar à igreja e à comunidade, a igreja e a comunidade chegam até ela (Mendonça Pinto, 2021). De modo que a varanda de sua casa é hoje um dos espaços mais movimentados e representativos de toda a vivência daimista no Céu do Mapiá.
É ali que Madrinha Rita realiza fielmente suas orações diárias e distribui bençãos para a irmandade e todos os visitantes. As crianças também são presença constante nesse ambiente, que atualmente também sedia diversas cerimônias espirituais do Santo Daime. A presença da Madrinha, aliás, é considerada pelos adeptos como algo especial, que transforma a experiência mística e coletiva em algo mais profundo e marcante.
a Madrinha Rita nunca está sozinha, mas sempre acompanhada de suas companheiras mulheres, o que revela uma relação de sororidade e uma rede de apoio feminino que orbitam em torno dela.
Importante notar, também, que a Madrinha Rita nunca está sozinha, mas sempre acompanhada de suas companheiras mulheres, o que revela uma relação de sororidade e uma rede de apoio feminino que orbitam em torno dela.
Ao mesmo tempo em que essas mulheres apoiam a madrinha Rita em suas necessidades de saúde, locomoção, companhia e trabalho, são apoiadas por ela em suas demandas pessoais e empoderadas como protagonistas da vida religiosa no Santo Daime.
Vem desde a década de 80 o esforço da Madrinha Rita pela realização de cerimônias religiosas exclusivas para mulheres, os “trabalhos de mulheres”. Registros históricos atestam inclusive a tentativa de Madrinha Rita instituir reuniões espirituais exclusivas de mulheres a cada 15 dias ou mensalmente (Mendonça Pinto, 2021).
Histórico também é o reconhecimento pela atenção, dedicação e carinho devotados pela Madrinha Rita às mulheres que fazem parte do Santo Daime, e sua tristeza frente às injustiças que por vezes perpassam a relação de homens para com as mulheres no interior da religião.
Foi a uma mulher – Regina Pereira – que Madrinha Rita entregou a casa onde morava com padrinho Sebastião, quando mudou de endereço.
A ausência de ciúmes em sua relação com Padrinho Sebastião e seus familiares e sua abertura para que suas seguidoras possam viver suas vidas de forma livre e plena também sempre estiveram à frente de seu tempo, e é um outro traço marcante de Madrinha Rita.
Como conta Dona Biná, outra anciã do Santo Daime e importante cronista da religião (Mendonça Pinto, 2021):
“Convidada por um grupo argentino para um ritual com São Pedro (Echinopsis pachanoi), fui consultar a madrinha. Ela me respondeu: vá conhecer o que não conhece. Está com medo de que?”
Também é um marco histórico para todo o Santo Daime, especialmente em frente à postura machista e homofóbica de alguns membros da religião, a autorização pessoal que Madrinha Rita deu para que um casal homoafetivo de mulheres pudesse se casar no ritual daimista (Platero e Platero, 2020).
Exemplo da potência e agência feminina no universo do Santo Daime e da ayahuasca
Madrinha Rita também recebeu seus próprios hinos religiosos, as canções canalizadas espiritualmente no âmbito do Santo Daime. Compilados em um hinário chamado “Lua Branca”, seus hinos são considerados ensinamentos de cura, amor, calma, paz e união pelos daimistas mundo afora, e já foram traduzidos para várias línguas, como inglês, holandês, espanhol, italiano e japonês.
Segundo a mitologia daimista, foi uma deusa universal, a Rainha da Floresta, quem entregou os ensinos do Santo Daime e revelou os mistérios da ayahuasca para Mestre Irineu. Mais do que uma mitologia que inclui mulheres, essa é uma mitologia onde a agência e protagonismo femininos são decisivos, fundamentais e estruturantes.
A vida da Madrinha Rita é um belíssimo exemplo do protagonismo feminino na vida social daimista, da relação íntima e bonita entre planta professora e agência feminina no universo ayahuasqueiro, e da potência que existe em se compartilhar essas histórias.
É muito importante, portanto, que as trajetórias femininas no Santo Daime sejam visibilizadas, e que as mulheres daimistas possam cada vez mais contar suas histórias. A vida da Madrinha Rita é um belíssimo exemplo do protagonismo feminino na vida social daimista, da relação íntima e bonita entre planta professora e agência feminina no universo ayahuasqueiro, e da potência que existe em se compartilhar essas histórias. Que mais e mais mulheres possam levantar sua voz para contar suas histórias, assim como a Madrinha Rita levantou a sua e cantou em seu hinário:
“Vou contar minha história
Desde quando começou
Santo Daime é minha vida
Meu caminho, meu professor
Eu agora vou dizer
O que Ele me ensinou”.
Referências:
MENDONÇA PINTO, Albina Luiza Autran. (2021). Costurando os retalhos: Crônicas do Céu do Mapiá. Editora Reviver, São Paulo.
MÓRTIMER, Lúcio. (2019). Bença, Padrinho! Editora Reviver, São Paulo.
PLATERO, Lígia e PLATERO, Klarissa. (2020). Uma experiência de casamento homossexual no Santo Daime. Chacruna Latinoamérica. Disponível em: https://chacruna-la.org/uma-experiencia-de-casamento-homossexual-no-santo-daime/
www.santodaime.org