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Uma experiência de casamento homossexual no Santo Daime

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La Dra. Beatriz Caiuby Labate (Bia Labate) es una antropóloga brasileña afincada en San Francisco. Es doctora en antropología social por la Universidad de Campinas (UNICAMP), Brasil. Sus principales áreas de interés son el estudio de las plantas medicinales, la política de drogas, el chamanismo, los rituales, la religión y la justicia social. Es Directora Ejecutiva del Instituto Chacruna de Plantas Medicinales Psicodélicas y Especialista en Educación Pública y Cultura de la Asociación Multidisciplinar de Estudios Psicodélicos (MAPS). También es profesora visitante en la Graduate Theological Union de Berkeley. Además, es Asesora de la Coalición de Liderazgo de Salud Mental de Veteranos y del Centro de Sanación Soltara. La Dra. Labate es cofundadora del Grupo Interdisciplinario de Estudios Psicoactivos (NEIP) en Brasil y editora de su sitio web. Es autora, coautora y coeditora de veintiocho libros, tres ediciones especiales de revistas y varios artículos revisados por expertos.

Bia Labate, Ph.D., tem doutorado em antropologia. Publicou 23 livros sobre psicodélicos e plantas sagradas, xamanismo, religião, ritual, políticas de drogas e justiça social. É co-fundadora e Diretora Executiva do Instituto

Lígia Platero possui formação interdisciplinar em Antropologia, História e Estudos Latino-americanos. É doutora em Ciências Humanas com ênfase em Antropologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Pesquisa sobre relações Interétnicas e ayahuasca.

Klarissa Platero possui doutorado em Sociologia, é professora do Departamento de Segurança Pública da Universidade Federal Fluminense (UFF) e coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre Sujeitos, Sociedade e Estado (Nepsse). Suas pesquisas de métodos mistos têm como objeto principal mortes violentas, perícia e justiça criminal no Brasil.

Cinco anos atrás, nos casamos no Rio de Janeiro, em um ritual religioso do Santo Daime. Recentemente, Shelby Hartman publicou um artigo no site Chacruna sobre a homofobia nos círculos ayahuasqueiros. Nós também passamos por situações de violência simbólica, dentro e fora dos rituais. Agradecemos muito aos irmãos da Igreja que nos ajudaram a organizar a cerimônia. Contudo, não podemos deixar de mencionar o que consideramos hoje como sendo um comportamento homofóbico.

Era dia 3 de maio de 2014. O local: uma casa no meio da Floresta da Tijuca, no Alto da Boa Vista, cidade do Rio de Janeiro, Brasil. Às dez da manhã, descemos até a mesa onde estava a juíza de paz, que desempenharia o papel burocrático de nos tornar legalmente casadas. Nós adquirimos os mesmos direitos civis de casais heterossexuais. Em 2011, numa decisão histórica, o Supremo Tribunal Federal do Brasil decidiu que casais homossexuais também tinham o direito de se casarem legalmente, como os mesmos direitos e obrigações do casamento heterossexual.

Cerimônia de casamento civil.
Crédito: Clarice Laender 
Lígia Platero assina o certificado
de casamento.
Crédito: Clarice Laender
Klarissa assina o certificado
de casamento assumindo
o sobrenome Platero.
Crédito: Clarice Laender 

Após o casamento civil, aconteceu uma versão adaptada do casamento da doutrina do Santo Daime. Nosso casamento não ocorreu no intervalo de um bailado no salão da igreja, como acontece nos casamentos heterossexuais dos adeptos dessa religião no Brasil.

Após o casamento civil, aconteceu uma versão adaptada do casamento da doutrina do Santo Daime. Nosso casamento não ocorreu no intervalo de um bailado no salão da igreja, como acontece nos casamentos heterossexuais dos adeptos dessa religião no Brasil.

Mantivemos três hinos (considerados canções sagradas) do Padrinho Sebastião, que são cantados em casamentos heterossexuais, mas mudamos os textos lidos pelo oficiante. Selecionamos a passagem bíblica de Coríntios 13, que fala sobre o amor, substituindo o texto convencional desta igreja, Efésios 5:23, de acordo com o qual “o marido é a cabeça da mulher”.

Cada noiva entrou no local da cerimônia acompanhada de seu respectivo padrinho de casamento, enquanto os convidados cantavam o hino “O Símbolo da Verdade”. Todos os presentes cantaram 14 hinos do Santo Daime, selecionados por nós. Os convidados estavam livres para consagrarem o daime se assim desejassem. Junto conosco, várias outras pessoas, a maioria daimistas, tomaram uma pequena dose do chá.

Altar preparado para a cerimônia religiosa com os símbolos do Santo Daime.
Crédito: Clarice Laender
Convidados posicionados no espaço da cerimônia religiosa.
Crédito: Clarice Laender.

Cinco anos depois, nos recordamos dos passos dados dentro das Igrejas do Santo Daime que nos levaram a este casamento. Entre os anos de 2010 e 2012, eu, Lígia, morei em outro país, onde passei por um processo de conversão religiosa e tornei-me uma “fardada” (adepta) do Santo Daime (Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal Patrono Sebastião Mota de Melo – ICEFLU).

Desde o início, fui aceita como homossexual nesta igreja. Concordo com Cavnar quando diz que o contexto do ritual (o setting) é muito importante no tocante à inclusão ou à exclusão no grupo. Além disso, a questão de sentir-se ou não bem recebida e aceita como homossexual pelos líderes e outros membros da irmandade é algo que muda significativamente a experiência.

Esta congregação consistia num pequeno grupo de jovens urbanos cujos valores sociais eram muito diferentes daqueles padrinhos brasileiros mais tradicionais; já havia um casal homossexual no grupo. Pude perceber a aceitação da homossexualidade, mas, paradoxal e simultaneamente, senti a presença de aspectos de uma cultura patriarcal.

Em geral, as igrejas daimistas (formalmente ligadas ou não ao ICEFLU) estão organizadas dentro de um modelo patriarcal e hierárquico. As mulheres geralmente são incentivadas a assumirem papéis de gênero relacionados à maternidade e desencorajadas a almejar posições de liderança. No nosso entendimento, existe um idealismo familiar predominantemente conservador e heterossexual.

O padrinho desta igreja fora do Brasil aceitou minha orientação homossexual, porém havia um esforço de sua parte para me fazer “parecer ser” heterossexual, com um claro comportamento normativo e de identidade de gênero feminina. Tal como prevalecente naquela sociedade (e também na brasileira), os homossexuais eram aceitos sob a condição de se adequarem à normativa cisgênero, hegemonicamente estabelecida.

Dessa forma, pude compreender que a intenção de encaixar os homossexuais em padrões heteronormativos tinha como origem os padrões morais de algumas lideranças e de alguns adeptos, que reproduziam o prevalecente na sociedade, e não dos ensinamentos dos espíritos das plantas.

Essa igreja recebia padrinhos e madrinhas brasileiros ligados ao ICEFLU. Certa vez, perguntei a uma madrinha brasileira que lá se encontrava como convidada sobre seu entendimento acerca da homossexualidade. Para ela, tratava-se de uma “doença social”, criada devido aos desequilíbrios entre o masculino e feminino. Outra madrinha brasileira me sugeriu buscar a maternidade através de um relacionamento heterossexual. Em outras palavras, o conselho foi para me encaixar nos padrões heteronormativos. Percebi que, para elas, a homossexualidade era um tipo de tabu, um comportamento a ser corrigido. Por outro lado, nos rituais de que participei, os espíritos das plantas nunca me orientaram buscar essa “correção”. Dessa forma, pude compreender que a intenção de encaixar os homossexuais em padrões heteronormativos tinha como origem os padrões morais de algumas lideranças e de alguns adeptos, que reproduziam o prevalecente na sociedade, e não dos ensinamentos dos espíritos das plantas.

Em certa ocasião, participei – juntamente com um grupo – de um ritual de peiote conduzido por um indígena local. Ao final da noite, o rosto de uma jovem, que eu não conhecia até então, me apareceu numa miração. Depois de alguns meses, numa viagem ao Rio de Janeiro em 2010, julguei ter reconhecido o rosto da jovem que tinha surgido na “visão espiritual”. Desde aquele dia, aquela mulher tornou-se minha namorada e, quatro anos mais tarde, minha esposa. Ao final de 2011, Klarissa tornou-se uma adepta do Santo Daime.

Em dezembro de 2012, passamos a morar juntas no Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo, frequentávamos uma das igrejas daimistas mais antigas fora do estado do Acre, de uma outra vertente expansionista da linha do padrinho Sebastião. Nos rituais do Santo Daime, passamos a ter mirações e intuições sobre nossa cerimônia de casamento. Como resultado, resolvemos falar com os líderes da igreja brasileira sobre a realização da cerimônia.
Primeiro, conversamos com a madrinha, que não se opôs à nossa união, apesar de seu evidente constrangimento. Ela enfatizou que a cerimônia não poderia acontecer no salão da igreja, pois “aquele tipo de cerimônia não pertence à tradição do Mestre Irineu [o fundador do Santo Daime] e do Padrinho Sebastião [uma das ramificações do Santo Daime]”. Ela nos deu a permissão, mas expressou a necessidade de levarmos o assunto ao conhecimento do padrinho da igreja.

Então fizemos conforme nos foi solicitado. Ao final de um trabalho, contamos nossa história a ele, que nos disse que precisaria pedir a permissão da Madrinha Rita, viúva do Padrinho Sebastião e, no seu entendimento, líder mais proeminente da religião Santo Daime na atualidade. A resposta definitiva seria dada depois dessa conversa. Concordamos com a condição. Requisitamos a ele a bebida daime (ayahuasca) para a cerimônia, e ele inicialmente não nos colocou nenhuma objeção. Começamos então os procedimentos legais do casamento. Confeccionamos os convites e enviamos aos membros da igreja, cerca de 80 pessoas ao todo.

Contudo, pudemos sentir, dentro e fora dos rituais, a oposição ao nosso casamento por parte de alguns membros da irmandade.

Contudo, pudemos sentir, dentro e fora dos rituais, a oposição ao nosso casamento por parte de alguns membros da irmandade. Por exemplo, dias antes do ritual, uma anciã da igreja, com quem tínhamos um bom relacionamento, nos telefonou, dizendo que, durante a sessão, o espírito do Padrinho Sebastião disse a ela que nosso casamento não poderia ocorrer. Entretanto, na mesma sessão, tivemos experiências com o espírito da planta que nos levaram a crer que nossos “guias espirituais”, Padrinho Sebastião incluso, concordavam com nossa união. Semanas depois do nosso casamento, essa senhora abandonou a igreja.

Esse episódio não foi o mais discordante. Dias antes da cerimônia, o padrinho desta igreja no Rio de Janeiro marcou uma sessão para homens na mesma data do nosso casamento. Essa atitude nos pareceu chocante porque nossos convidados homens eram esperados para aquele ritual, que começaria no mesmo horário da nossa cerimônia.

Quando fomos falar com o padrinho, ele alegou que não tínhamos confirmado a data. Todavia, tínhamos entregue o convite à sua família com a data impressa nele. A madrinha estava ciente. Além do mais, nessa conversa, o padrinho argumentou que tínhamos transformado a cerimônia num evento maior do que ele tinha imaginado.

Ele sugeriu que deveríamos ter uma sessão menor e mais discreta, na qual tomaríamos daime (ayahuasca) no intervalo de alguma sessão, na própria igreja, num espaço chamado “casinha do Daime”, somente na presença do oficiante e de dois padrinhos e duas madrinhas de casamento. Em outras palavras, longe dos olhos de todos e “no armário”. Ele chegou até mesmo a sugerir que a data do casamento fosse mudada.

Por outro lado, e para a nossa alegria, a madrinha da igreja carioca confirmou a autorização da Madrinha Rita: “Sim, minha filha, você está autorizada. Melhor casar do que ficar pulando de galho em galho”.

Aqui, a moral conservadora prevaleceu, e essa atitude o levou a tentar impedir que membros da igreja comparecessem ao nosso casamento. Essa situação foi um dos pontos de maior tensão e conflito envolvendo a organização da cerimônia. Por outro lado, e para a nossa alegria, a madrinha da igreja carioca confirmou a autorização da Madrinha Rita: “Sim, minha filha, você está autorizada. Melhor casar do que ficar pulando de galho em galho”.

Apesar disso, o padrinho da igreja do Rio recusou-se a providenciar o daime que ele mesmo havia concordado em ceder para consagrar nossa união. Fomos atrás de outro fornecedor e conseguimos a ayahuasca no mesmo lugar onde a cerimônia aconteceria, que era o espaço de outra linha xamânica ligada a povos indígenas (Guardiões Huni Kuin, também conhecidos como Tradições Xamânicas da América Indígena).

Depois da cerimônia de casamento e do almoço, o número de participantes homens na celebração diminuiu, uma vez que eles tiveram de sair para participar da sessão anunciada pelo padrinho da igreja. Contudo, a festa continuou até o fim da tarde, com a presença das mulheres fardadas da igreja, crianças, familiares e amigos: um momento inesquecível para nós.

Depois de algumas semanas, um antigo membro do Santo Daime nos disse que nosso casamento havia amenizado rumores e fofocas sobre homossexualidade entre os membros desta igreja. Compreendemos então que nosso relacionamento, uma vez publicizado, tinha trazido à tona o tema da homossexualidade.

À época, havia outros membros gays do Santo Daime que escolheram continuar escondendo da irmandade este aspecto de suas vidas. Ficamos sabendo sobre alguns deles por causa de comentários de outros membros, ou porque eles se sentiram à vontade de se assumirem para nós.

Apesar  de todos os conflitos e violência simbólica, nós seguimos em frente e nos casamos em um ritual adaptado, e fomos respeitadas como casal pelos outros adeptos. Acreditamos que, em virtude da nossa cerimônia de casamento, houve uma relativa mudança social referente à aceitação de casais homossexuais nessa igreja.

Apesar de todos os conflitos e violência simbólica, nós seguimos em frente e nos casamos em um ritual adaptado, e fomos respeitadas como casal pelos outros adeptos. Acreditamos que, em virtude da nossa cerimônia de casamento, houve uma relativa mudança social referente à aceitação de casais homossexuais nessa igreja.

Por outro lado, naquele contexto, continuou a existir uma moralidade hegemônica heteronormativa e conservadora. Em razão da nossa experiência aqui narrada, tivemos ciência de casais homoafetivos que são líderes do Santo Daime na linha do Padrinho Sebastião e que se apresentam publicamente como heterossexuais para evitar conflitos relacionados à homofobia.

Cremos que pesquisas socioantropológicas devem ser incentivadas com o objetivo de se determinar se igrejas lideradas por homossexuais oferecem um ambiente mais acolhedor para homossexuais e transgêneros. Isso porque, por experiência própria, vimos como é importante uma postura acolhedora para a população LGBTQI+ que está engajada num processo de autoconhecimento e cura pessoal.

Além disso, nossa intenção com este texto é mostrar aos adeptos das linhas do Santo Daime que a população LGBTQI+ tem o direito de se casar em rituais dessa religião. Acreditamos que o nosso texto possa estimular reflexões sobre a criação de normativas relacionadas aos casamentos transhomoafetivos. Tais normativas, no nosso entendimento, devem equiparar as práticas rituais dos casamentos heterossexuais aos casamentos transhomoafetivos, tal como já acontece no âmbito jurídico no Brasil.

Referências

Cavnar, C. (2018). Ayahuasca’s influence in gay identity. In B. C. Labate, C. Cavnar, & A. K. (Eds.), The expanding world ayahuasca diaspora: Appropriation, integration and legislation. New York City, NY: Routledge.

Hartman, S. (2019). Why LGBTQI+ members are creating their own ayahuasca circles. Chacruna.net. Retrieved from https://chacruna.net/why-lgbtqi-members-are-creating-their-own-ayahuasca-circles/

Arte de Karina Álvarez

Nota: Este texto foi publicado originalmente em inglês aqui

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