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Oito perguntas frequentes sobre a globalização da ayahuasca

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La Dra. Beatriz Caiuby Labate (Bia Labate) es una antropóloga brasileña afincada en San Francisco. Es doctora en antropología social por la Universidad de Campinas (UNICAMP), Brasil. Sus principales áreas de interés son el estudio de las plantas medicinales, la política de drogas, el chamanismo, los rituales, la religión y la justicia social. Es Directora Ejecutiva del Instituto Chacruna de Plantas Medicinales Psicodélicas y Especialista en Educación Pública y Cultura de la Asociación Multidisciplinar de Estudios Psicodélicos (MAPS). También es profesora visitante en la Graduate Theological Union de Berkeley. Además, es Asesora de la Coalición de Liderazgo de Salud Mental de Veteranos y del Centro de Sanación Soltara. La Dra. Labate es cofundadora del Grupo Interdisciplinario de Estudios Psicoactivos (NEIP) en Brasil y editora de su sitio web. Es autora, coautora y coeditora de veintiocho libros, tres ediciones especiales de revistas y varios artículos revisados por expertos.

Bia Labate, Ph.D., tem doutorado em antropologia. Publicou 23 livros sobre psicodélicos e plantas sagradas, xamanismo, religião, ritual, políticas de drogas e justiça social. É co-fundadora e Diretora Executiva do Instituto

Henrique Antunes
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El Dr. Henrique Fernandes Antunes es doctor en antropología por la Universidad de São Paulo (2019), con una pasantía de investigación como investigador visitante en la Universidad de California, Berkeley. Fue becario postdoctoral en el Centre d'Étude des Mouvements Sociaux (CEMS) de la École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS). Es máster en Antropología por la Universidad de São Paulo (2012) y licenciado en Ciencias Sociales (2006) y Antropología (2008) por la Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP-FFC). Es miembro del grupo de investigación Religión en el Mundo Contemporáneo y becario postdoctoral en el Programa Postdoctoral Internacional del Centro Brasileño de Análisis y Planificación (CEBRAP). También es investigador del Grupo Interdisciplinario de Estudios Psicoactivos (NEIP). El Dr. Antunes está especializado en antropología urbana, antropología de la religión, antropología del secularismo y sociología de los problemas públicos. Es Coordinador del Comité Comunitario de Ayahuasca en el Instituto Chacruna.

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El Dr. Glauber Loures de Assis es Director Asociado de Chacruna Latinoamérica en Brasil. Es Doctor en Sociología por la Universidad Federal de Minas Gerais (UFMG) e Investigador Asociado del Grupo Interdisciplinario de Estudios Psicoactivos (NEIP) en Brasil. Sus principales intereses incluyen las religiones ayahuasqueras, los nuevos movimientos religiosos, la internacionalización de las religiones brasileñas, el uso de drogas en la sociedad contemporánea y la paternidad psicodélica. Es autor de numerosos artículos y capítulos de libros, y coeditor del libro Women and Psychedelics: Uncovering Invisible Voices (Synergetic Press/Chacruna Institute, en prensa). Glauber es también un practicante de ayahuasca con 15 años de experiencia. Ha construido esta práctica en diálogo con su comunidad local de ayahuasca brasileña y con la bendición de ancianos y activistas indígenas de Brasil. También es el líder de Jornadas de Kura, un centro de medicina vegetal en Brasil que promueve un puente entre el uso ceremonial de plantas sagradas y la ciencia psicodélica. Es padre de 3 hijos y vive con su esposa Jacqueline Rodrigues en Santa Luzia, Minas Gerais, Brasil.

Doctor en Sociología por la UFMG y Director Asociado de Chacruna Latinoamérica en Brasil

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Clancy Cavnar es doctora en psicología clínica (Psy.D.) por la Universidad John F. Kennedy de Pleasant Hill, California. Actualmente trabaja en la práctica privada en San Francisco, y es cofundadora y miembro de la Junta Directiva del Instituto Chacruna de Plantas Psicodélicas Medicinales. También es investigadora asociada del Grupo Interdisciplinario de Estudios Psicoactivos (NEIP). Combina un ecléctico abanico de intereses y actividades como psicóloga clínica, artista e investigadora. Tiene un máster en Bellas Artes en pintura por el Instituto de Arte de San Francisco, un máster en asesoramiento por la Universidad Estatal de San Francisco y completó el programa de Certificado en Terapia Asistida por Psicodélicos del Instituto de Estudios Integrales de California (CIIS). Es autora y coautora de artículos en varias revistas especializadas y coeditora, con Beatriz Caiuby Labate, de once libros. Para más información, véase: http://www.drclancycavnar.com.

Clancy Cavnar, Ph.D., tem doutorado em psicologia clínica. É cofundadora e membro do conselho de diretores do Instituto Chacruna.

Para os nossos leitores que talvez não estejam familiarizados com a cultura da ayahuasca no Brasil, vocês podem falar um pouco sobre o seu significado cultural e histórico? Como é que a ayahuasca é vista pelos brasileiros e pelo governo brasileiro?

O uso da ayahuasca é central para um grande número de populações indígenas da região amazônica. A partir da década de 1930, assistimos ao surgimento de movimentos religiosos que incorporaram ao uso da ayahuasca também elementos cristãos, entre outras influências culturais e religiosas. Trata-se de um fenômeno muito particular, limitado ao Brasil. O governo brasileiro reconheceu o uso religioso da ayahuasca como parte das tradições culturais das populações indígenas e afro-brasileiras, em processo que remonta ao início da década de 1980. Em 1985, a ayahuasca foi proibida no Brasil por um curto período de tempo. No entanto, a pedido da UDV (União do Vegetal), o Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN) decidiu reavaliar o assunto, instituindo um grupo de trabalho com membros do CONFEN e vários estudiosos. Após dois anos de pesquisa – em que o grupo visitou igrejas de ayahuasca na Amazônia e no Sudeste do Brasil, entrevistou líderes religiosos e fez uma revisão bibliográfica minuciosa – o grupo de trabalho decidiu suspender definitivamente a proibição da ayahuasca. Nos anos 2000, o Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas (CONAD) instituiu um grupo de trabalho multidisciplinar (GTM) para estabelecer diretrizes para o uso responsável da ayahuasca.

Mulheres preparando cipó de ayahuasca. Foto: Glauber Assis.

Foi uma iniciativa pioneira, já que o grupo de trabalho contou com representantes das principais religiões ayahuasqueiras do Brasil. Em 2006, o GTM publicou um relatório com uma série de recomendações e orientações para os grupos ayahuasqueiros, como a interdição do comércio e do turismo ayahuasqueiro, a proibição do proselitismo e da propaganda enganosa, a necessidade de manter um cadastro dos recém-chegados e a triagem de possíveis casos em que o uso não é recomendado, como em alguns tipos de transtornos psiquiátricos ou em casos de pessoas que fazem uso de determinados medicamentos. Em 2010, o CONAD estabeleceu uma resolução reafirmando a legitimidade do uso religioso da ayahuasca no Brasil, com base nos princípios constitucionais da liberdade religiosa e da salvaguarda das tradições culturais indígenas e afro-brasileiras. Além disso, na década de 2000, o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), a pedido das religiões ayahuasqueiras do Acre, iniciou um processo de reconhecimento do uso religioso da ayahuasca como patrimônio cultural imaterial no Brasil.

Esse processo em curso tem sido permeado por tensões sobre quais grupos e práticas serão contemplados pelo pedido, com um crescente protagonismo da voz dos povos indígenas. No entanto, a mudança de políticas de drogas para políticas de patrimônio cultural sobre esse assunto em nosso país atesta um novo momento para o uso da ayahuasca no Brasil, reafirmando o reconhecimento do governo brasileiro da ayahuasca como uma prática religiosa e cultural legítima. Apesar da posição do governo, o uso da ayahuasca é relativamente desconhecido em algumas regiões do Brasil e por várias camadas da população, e é comum encontrar artigos de jornal que fetichizam a ayahuasca e a associam ao consumo problemático de drogas. No entanto, com o reconhecimento do governo brasileiro e as contribuições de pesquisas antropológicas e biomédicas, a opinião pública começou a mudar e também passamos a ver artigos que reconhecem o valor religioso e cultural da ayahuasca. Devemos ressaltar, no entanto, que a cultura ayahuasqueira sofreu um retrocesso significativo durante o governo de Bolsonaro, especialmente devido ao desmantelamento de importantes ramos e políticas governamentais, juntamente com o preconceito de igrejas evangélicas que demonizam a ayahuasca. Veremos o que o futuro reserva para a comunidade ayahuasqueira com o novo mandato do presidente Lula.

Cada vez mais pessoas se interessam por substâncias psicodélicas em geral, e algumas procuram experiências com ayahuasca como forma de turismo psicodélico. Qual é o efeito desse movimento?

É inegável que estamos assistindo a um renascimento psicodélico, impulsionado, entre outros fatores, pela diáspora mundial da ayahuasca. Desde a década de 1990, temos assistido a um aumento significativo de pessoas do Norte Global em viagens à Amazônia peruana, equatoriana, colombiana e brasileira para participar de cerimônias de ayahuasca. A proibição legal da ayahuasca em certos países é uma das razões pelas quais as pessoas optam por viajar para a Amazónia, envolvendo-se numa forma de turismo de cura ou espiritual. Esta prática tem aumentado ao longo dos anos, impulsionada também pela riqueza da informação disponível na Internet. Embora um bom número de pessoas tenha experiências significativas e positivas, o aumento do turismo de ayahuasca também pode ser entendido como uma nova forma de prática colonial e extrativista, uma vez que muitos consumidores estão seguindo os seus próprios interesses de cura e crescimento pessoal, sem considerar o impacto desta nova forma de turismo nas comunidades e culturas locais, bem como nas florestas, na fauna e flora e na organização social.

Assim, a diáspora global da ayahuasca tem sido acompanhada pela mercantilização da ayahuasca, uma vez que essa bebida se tornou parte de uma cadeia de abastecimento global que envolve trocas monetárias. Não podemos falar de fluxos culturais transnacionais e ignorar a esfera econômica transnacional moderna. Para além das questões sensíveis que giram em torno da mercantilização da ayahuasca, como a propriedade intelectual, a biopirataria, a apropriação cultural e a monetização, há também um impacto ambiental que é um subproduto desta tendência recente. Como a procura de ayahuasca cresce a cada dia, esta mercantilização tem não só impactos ambientais, mas também impactos sociais e econômicos nas populações dos países sul-americanos, levantando questões mais vastas. Além disso, existe o risco de praticantes sem escrúpulos explorarem turistas em busca de uma experiência espiritual. Dito isto, temos de reconhecer que os fluxos de pessoas da Amazônia para a Europa, América do Norte e outros locais, e a viagem de pessoas de todo o mundo para a Amazônia à procura de uma experiência “autêntica” com ayahuasca, parece ser uma tendência que veio para ficar.

A questão é: como podemos garantir que as comunidades locais serão respeitadas e que vão também receber algo de positivo em troca, não só financeiramente, mas também em termos de oportunidades para expandir as suas redes e sensibilizar as pessoas para as suas necessidades e objetivos? Em outras palavras, como podem estes fluxos culturais transnacionais conduzirem a intercâmbios significativos, em vez de promoverem novas formas de colonialismo? Para além disso, é importante avaliar e abordar os impactos destas trocas culturais e as mudanças que promovem, como a criação de novos rituais e tradições com a incorporação de novos instrumentos e estilos musicais. Mas há também mudanças mais profundas, como a intensificação das desigualdades sociais.

Pesquisadores brasileiros têm estudado os efeitos da ayahuasca, muitas vezes trabalhando em parcerias com igrejas. Nos Estados Unidos, alguns pesquisadores têm tentado fazer o mesmo. Existe uma forma ética de fazer isso, assegurando ao mesmo tempo o respeito pelos povos indígenas e pelas suas tradições?

As diversas formas de preparo e uso da ayahuasca pelos povos indígenas e comunidades tradicionais podem ser enquadradas como “conhecimento tradicional associado ao patrimônio genético”. De acordo com a legislação brasileira, qualquer nova pesquisa ou desenvolvimento tecnológico que envolva a composição, os processos de preparo e o uso da ayahuasca por diferentes povos indígenas é considerado “acesso a conhecimento tradicional associado de origem identificável” e, portanto, requer o consentimento prévio, livre e informado de pelo menos um representante coletivo dos detentores desse conhecimento. A rastreabilidade é uma caraterística importante da legislação, pois assegura o cumprimento dos direitos dos detentores de conhecimentos tradicionais associados, especialmente ao garantir a realização de um procedimento adequado para a obtenção do consentimento, respeitando a organização social de cada povo ou comunidade e assegurando a repartição de benefícios no caso de exploração comercial de produtos resultantes da pesquisa ou desenvolvimento tecnológico realizado na etapa anterior. Embora os EUA não sejam signatários do Protocolo de Nagoya, este pode ser visto como uma iniciativa importante neste sentido.

Relacionado com esta discussão está o conceito de “injustiça epistêmica” que começou a ser discutido recentemente no âmbito dos estudos biomédicos da ayahuasca.

Aliança entre religiões povos indígenas e centros ayahuasqueiros urbanos em Minas Gerais. Foto: Guillaume.

Quais são as preocupações de vocês sobre a crescente popularidade da ayahuasca nos Estados Unidos? E quais podem ser os benefícios desta popularidade crescente?

De acordo com um relatório feito pelo ICEERS, os Estados Unidos são o país com mais pessoas que tomam ayahuasca no mundo. A crescente popularidade da ayahuasca na América do Norte pode contribuir para a conscientização do valor cultural e histórico das tradições indígenas e dos grupos religiosos que a utilizam. Pode também contribuir para o debate sobre o uso de substâncias psicodélicas e a terapia assistida por psicodélicos. Esta é uma questão extremamente importante, uma vez que os grupos ayahuasqueiros são frequentemente vítimas de estigmas sociais. Não só enfrentam preconceitos culturais, como também são apontados como organizações criminosas potencialmente perigosas. Esta parece ser a tendência dominante atualmente na Europa, onde a criminalização da ayahuasca e o número de detenções têm chegado a uma taxa alarmante. O fato de existirem duas religiões ayahuasqueiras já bem estabelecidas nos Estados Unidos, a UDV e o Santo Daime, constitui um exemplo importante para outros países. Não é segredo que os Estados Unidos têm procurado um papel de liderança na guerra contra as drogas.

Se um país como os Estados Unidos, que investiu muito tempo e dinheiro em políticas proibicionistas, consegue encontrar espaço para acomodar os direitos religiosos de minorias ayahuasqueiras, então é claro que há formas de os governos estabelecerem compromissos e respeitarem os direitos de grupos religiosos e populações tradicionais. No entanto, a crescente popularidade da ayahuasca também pode dar origem a manchetes sensacionalistas, informação enganosa e práticas inseguras. Pode também intensificar a mercantilização da ayahuasca, uma vez que esta pode ser vista como apenas mais uma substância psicodélica no crescente mercado norte-americano, havendo o risco de reforçar as práticas colonialistas que lhe estão associadas. Contudo, devemos sublinhar que até o momento não há provas de um potencial mercado ilegal de ayahuasca, e que o seu uso está limitado a um número restrito de grupos nos Estados Unidos.

À medida que mais grupos e igrejas se começam a formar em torno da medicina vegetal, o que é que você e o Chacruna ajudam a proporcionar?

Um dos objectivos do Chacruna é fazer a ponte entre as tradições das plantas sagradas e o campo emergente da ciência psicodélica, entre o “uso cerimonial tradicional” e os contextos clínicos e terapêuticos, e entre o meio acadêmico e o público em geral. O principal papel do Chacruna é educar o público e promover a conscientização da legitimidade cultural e histórica destas substâncias, para que deixem de ser estigmatizadas e proibidas. Desenvolvemos o Conselho para a Proteção das Plantas Sagradas e o Comitê Comunitário da Ayahuasca. O objetivo do Conselho para a Proteção das Plantas Sagradas é defender a legalidade das plantas medicinais sagradas entre os Povos Indígenas e as igrejas psicodélicas não indígenas. O Conselho promove práticas legais de redução de danos para proteger os consumidores de ayahuasca e fornece educação sobre a conservação de espécies vegetais, legislação intelectual e ambiental.

Publicamos um recurso sobre as melhores práticas, ensinando as comunidades a aprenderem sobre a Lei de Restauração da Liberdade Religiosa (RFRA), e encorajando-as a se auto-organizarem e se auto-regularem. Também mapeamos questões legais e as principais controvérsias públicas em torno da ayahuasca a nível global; fornecemos informação sobre padrões de aplicação da lei; monitoramos os desenvolvimentos legais envolvendo casos de isenções religiosas de igrejas de ayahuasca (tais como Soul Quest’s, NAAVC, e outras); fornecemos apoio e recursos espirituais, emocionais e legais para pessoas que enfrentam batalhas legais na justiça; atuamos como testemunhas especializadas em casos de acusação; apoiamos o caso federal da Igreja da Águia e do Condor e os pedidos FOIA ao DEA e à Alfândega e também um Amicus Brief em apoio aos direitos religiosos de uma igreja ao abrigo da RFRA. Também publicamos, em colaboração com pesquisadores renomados, uma crítica a um relatório tendencioso do DEA sobre a ayahuasca. O Comité Comunitário da Ayahuasca, por sua vez, desenvolveu materiais como o “Guia Comunitário da Ayahuasca para a Consciencialização do Abuso Sexual”, “Recursos Jurídicos Complementares para o Guia Comunitário da Ayahuasca para a Consciencialização do Abuso Sexual”, “Divulgação Comunitária”, “Inquérito sobre Abuso Sexual” e “A Mercantilização da Ayahuasca”, entre outras iniciativas.

É importante que as pessoas reconheçam e mantenham a cultura e a tradição de uma cerimónia de ayahuasca que veio da América do Sul? Por quê?

É crucial que as tradições dos povos indígenas e as religiões ayahuasqueiras sejam reconhecidas pelo seu valor histórico, social, cultural e ambiental. Num contexto em que a Floresta Amazônica se tornou o centro das atenções globais em relação às mudanças climáticas, o reconhecimento e a promoção das práticas das populações tradicionais fazem parte de uma agenda pela proteção da Amazônia. Não há conservação possível para a floresta se as populações tradicionais também não forem protegidas. Em outras palavras, o bem-estar das populações tradicionais é essencial para a preservação do bioma amazônico. Isso se tornou uma questão política e um tema crucial na agenda contemporânea dos povos indígenas que bebem ayahuasca. Essa agenda ambiental se cruza com questões do cenário da ayahuasca, como políticas patrimoniais, apropriação cultural, mercantilização, biopirataria, entre outras.

Portanto, a salvaguarda da cultura tradicional e a proteção do ambiente não podem ser consideradas como algo separado. Isto também se aplica às religiões ayahuasqueiras, que há décadas promovem projetos ambientais. Só pode haver verdadeira inclusão e diversidade se o valor histórico e cultural do Sul Global, com as suas cosmologias e ethos, for reconhecido e respeitado.

O que acha de pessoas de uma etnia e cultura diferentes usarem e promoverem este psicodélico? Trata-se de apropriação cultural?

Temos assistido a um boom relacionado com a diáspora mundial da ayahuasca que tem levado a reinvenções e controvérsias. Quando uma prática deixa o seu contexto geográfico original e é inserida em diferentes contextos sociais, culturais, políticos e econômicos, as mudanças são inevitáveis. De fato, o surgimento das religiões ayahuasqueiras brasileiras está intrinsecamente ligado às trocas culturais entre povos indígenas e seringueiros da Amazônia, que levaram a uma nova forma de uso da ayahuasca que incorporou elementos das tradições indígenas e outras características do catolicismo popular, das religiões afro-brasileiras, do espiritismo kardecista e do esoterismo europeu. Não se trata de algo novo. Contudo, o panorama atual é bastante diferente, e a ayahuasca faz parte de uma tendência global que ultrapassa em muito os limites geográficos e culturais da Amazônia.

O uso da ayahuasca tem passado por algumas reinvenções significativas desde que foi inserido nos centros urbanos da América do Sul e outros lugares do mundo. A ayahuasca tem sido usada em sessões de meditação, no tratamento da toxicodependência, em sessões de psicoterapia e para inspiração artística. Há também novos desenvolvimentos que surgiram através das conexões entre as religiões ayahuasqueiras e as religiões afro-brasileiras, o neo-xamanismo e outras tendências terapêuticas e espirituais urbanas. Essas práticas alteraram o cenário urbano do uso da ayahuasca, levando à criação de redes neo-esotéricas e terapêuticas. Frequentemente, estes grupos contemporâneos têm algum tipo de relação com as religiões ayahuasqueiras tradicionais ou com os povos indígenas, formando uma intersecção entre as redes urbanas e os usos tradicionais amazônicos da ayahuasca. Considerando a crescente pluralização e expansão do uso da ayahuasca, não cabe a nós, antropólogos e pesquisadores, definir quais práticas fazem parte ou não de tradições legítimas, e quem é ou não portador de determinadas tradições. Dito isso, é importante ressaltar os riscos da biopirataria e destacar a necessidade de uma legislação de acesso e repartição de benefícios, além de outras políticas que privilegiem os direitos das populações indígenas e tradicionais. Os povos indígenas têm feito parte da nova cena urbana da ayahuasca e também têm sido protagonistas da agenda política da ayahuasca na América do Sul.

Esses grupos estão reivindicando seu papel como portadores da tradição da ayahuasca, desenvolvendo formas de autorregulação e exigindo que os governos locais e nacionais criem uma agenda para o uso indígena da ayahuasca. Nesse sentido, sua presença crescente nas principais cidades da América do Sul não é apenas legítima, mas faz parte de seus direitos como povos indígenas. Uma vez que o uso indígena da ayahuasca se espalhou para diferentes locais, esses grupos passaram a enfrentar vários novos desafios, especialmente legais, forçando-os a se adaptarem ao quadro jurídico e às diretrizes sobre o uso religioso da ayahuasca. Em suma, trata-se de uma questão muito complexa, uma vez que as tradições de uso da ayahuasca só podem prosperar e sobreviver na paisagem contemporânea se se reinventarem e se adaptarem.

Casa de bateção. Jornadas de Kura, 2024. Foto: Guillaume.

Atualmente, há muitos xamãs que viajam para o Norte Global e conduzem cerimônias em países como os EUA. Isso será amplamente aceito? O que podemos fazer em relação à expansão global da ayahuasca?

Ao contrário de algumas religiões ayahuasqueiras brasileiras, como um ramo específico do Santo Daime e a União do Vegetal, que ganharam o direito legal de usar a ayahuasca num contexto religioso, não há regulamentação para o uso indígena da ayahuasca nos EUA. Isto tem criado problemas legais para as populações indígenas, que começam a inserir-se cada vez mais na diáspora mundial da bebida. Sem dúvida, os povos indígenas são os fundadores/descobridores da ayahuasca, e são portadores de uma rica tradição histórica e cultural. É crucial abrir um diálogo para procurar a melhor forma de acomodar estas tradições nos fluxos culturais transnacionais contemporâneos. Recordemos que o nome científico do cipó da ayahuasca, Banisteriopsis caapi, foi apropriado pelo botânico Richard Spruce da cultura do povo Tukano do alto Rio Negro, que conhece a ayahuasca como caapi/kahpi desde tempos imemoriais.

Como estamos a acomodando a expansão transnacional indígena da ayahuasca, e como estrando retribuindo às populações indígenas nesse cenário? Uma das nossas maiores preocupações é que estes grupos sejam respeitados e que possam encontrar o seu próprio caminho para o uso da ayahuasca nos centros urbanos da América do Sul e do Norte Global, sem terem de se conformar com regulamentos que foram estabelecidos apenas para o uso religioso da ayahuasca. Além disso, é crucial falar sobre reciprocidade. O Instituto Chacruna desenvolveu a Iniciativa de Reciprocidade Indígena das Américas (IRI), um programa que consiste numa rede de diferentes grupos e organizações indígenas envolvidas em vários projetos que incluem segurança alimentar e hídrica, agrofloresta e saúde ambiental, luta pelo direito à terra e construção de redes de apoio econômico e educacional. Os projetos desenvolvidos pelo IRI são concebidos e implementados pelas comunidades indígenas com 100% de autonomia para satisfazer as suas próprias necessidades e prioridades, e não algo imposto do exterior.

Convidamos todos os leitores a conhecer e apoiar!

Tradução de Glauber Loures
Arte de Mariom Luna

Este artigo foi originalmente publicado no MAPS Bulletin: Volume XXXIII Number 3 • 2023

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