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Famílias Psicodélicas: Mães e pais juntos contra o preconceito

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Cientista Social e mestra em Antropologia pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Científica Social y Maestra en Antropología por la Universidad Federal de Minas Gerais.

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El Dr. Glauber Loures de Assis es Director Asociado de Chacruna Latinoamérica en Brasil. Es Doctor en Sociología por la Universidad Federal de Minas Gerais (UFMG) e Investigador Asociado del Grupo Interdisciplinario de Estudios Psicoactivos (NEIP) en Brasil. Sus principales intereses incluyen las religiones ayahuasqueras, los nuevos movimientos religiosos, la internacionalización de las religiones brasileñas, el uso de drogas en la sociedad contemporánea y la paternidad psicodélica. Es autor de numerosos artículos y capítulos de libros, y coeditor del libro Women and Psychedelics: Uncovering Invisible Voices (Synergetic Press/Chacruna Institute, en prensa). Glauber es también un practicante de ayahuasca con 15 años de experiencia. Ha construido esta práctica en diálogo con su comunidad local de ayahuasca brasileña y con la bendición de ancianos y activistas indígenas de Brasil. También es el líder de Jornadas de Kura, un centro de medicina vegetal en Brasil que promueve un puente entre el uso ceremonial de plantas sagradas y la ciencia psicodélica. Es padre de 3 hijos y vive con su esposa Jacqueline Rodrigues en Santa Luzia, Minas Gerais, Brasil.

Doctor en Sociología por la UFMG y Director Asociado de Chacruna Latinoamérica en Brasil

No início da manhã do dia 16 de julho de 2022, nós participávamos de um cerimônia de ayahuasca em um centro do Santo Daime quando, seguindo o costume local, saudamos os pequeninos dando um sonoro “Viva às crianças”!

Instantes depois, Jacqueline, coautora desse artigo, então com 38 semanas de gestação, entrou em trabalho de parto.

Nós havíamos contratado uma equipe médica para nos auxiliar em casa durante o início do processo de parto. Mas tudo se sucedeu muito rápido, e não conseguimos apoio do time contratado, que naquele exato momento se encontrava saindo de um compromisso em outra cidade.

Ficamos preocupados com essa situação, e na ausência de apoio médico especializado, procuramos naquele momento nos lembrar da arte do partejar praticada na religião do Santo Daime, confiando em nossa identidade como membros dessa tradição para vivenciar aquela experiência. Tomamos a decisão de olhar para o que estávamos vivendo como um bonito ritual. Ingerimos um pouco de ayahuasca, considerada por nós como um sacramento, fizemos nossas preces, e procuramos nos concentrar na memória das grandes parteiras e das pretas velhas responsáveis por apoiarem inúmeras mulheres em momentos desafiadores durante toda a história do Brasil.

Entramos no carro e seguimos rumo à maternidade, que ficava a 50km de distância. No caminho, cantamos hinos do Santo Daime enquanto nos concentrávamos na solenidade e beleza daquele momento. O trabalho de parto evoluiu de forma surpreendentemente rápida e, enquanto estávamos no centro de Belo Horizonte, ainda no caminho para o hospital, Yara Maria nasceu.

Um nascimento que ocorre dentro de um carro certamente é uma situação de grande responsabilidade e necessidade de controle emocional. E a despeito de todo o ruído da cidade ao redor de nós e do desafio da situação, através da conexão com nossas raízes espirituais e psicodélicas nós tivemos condição de abraçar aquela experiência e nos sentir protegidos. Tivemos a confiança necessária para controlar nossas emoções e chegar até a maternidade, com nossa filhinha embalada de forma segura nos braços de sua mãe.

Hoje somos uma família psicodélica composta por 5 pessoas. Somos mãe e pai de 3 crianças pequenas. Gael, de cinco anos; Guaracy, de 2 anos; e Yara, de 1 ano. Também somos pesquisadores e entusiastas das plantas sagradas e suas culturas, e membros do Instituto Chacruna.

Jacqueline, Glauber, Gael, Guaracy e Yara Maria, reunidos 2 meses depois de seu nascimento.

Essa condição existencial despertou em nós um interesse pessoal e intelectual muito grande sobre maternidade e paternidade psicodélica, o que nos motivou a refletir e escrever sobre o tema. A partir de nossa experiência como mãe e pai psicodélicos, compartilhamos aqui, brevemente, 10 tópicos para a formação de uma agenda de pesquisa e um guia de boas práticas sobre o tema.

Acreditamos que esses tópicos podem ajudar não somente mães e pais psicodélicos, mas também crianças e jovens, e impactar positivamente na construção de espaços seguros e inclusivos para famílias na comunidade psicodélica.

1. Psicodélicos e o parto. Existem muitas tradições culturais nas quais psicodélicos são uma parte integral da vida comunitária, e podem eventualmente ser usados durante a gravidez e o parto, como é o caso da tradição do partejar no Santo Daime, e também durante a amamentação, como no exemplo das mães Wixárika. Tornar-se familiarizado com essas culturas pode ser algo libertador em um mundo onde as práticas tradicionais de saúde e de cuidado com a família são desacreditadas em prol do controle patriarcal biopolítico sobre os corpos de mulheres e crianças. Aqui, é importante enfatizar que o Brasil tem uma posição interessante sobre a ayahuasca, que pode servir de exemplo para outros países. Em território brasileiro, o uso religioso da ayahuasca é permitido, mulheres grávidas têm autonomia para consumir a bebida em suas práticas espirituais, e a participação de crianças em cerimônias é um direito garantido aos pais.

Em diversos grupos onde rituais com psicodélicos acontecem, simplesmente não há espaços ou pessoas preparadas para acolher propriamente as crianças. Crianças são até mesmo vistas em alguns contextos como presenças indesejáveis ou barulhentas. Entretanto, se queremos falar a sério sobre diversidade e inclusão, também precisamos estar preparados para incluir as crianças.

2. Criar espaços para as crianças e sua integração nas comunidades psicodélicas. Em diversos grupos onde rituais com psicodélicos acontecem, simplesmente não há espaços ou pessoas preparadas para acolher propriamente as crianças. Crianças são até mesmo vistas em alguns contextos como presenças indesejáveis ou barulhentas. Entretanto, se queremos falar a sério sobre diversidade e inclusão, também precisamos estar preparados para incluir as crianças.

3. Reconhecer e valorizar as mães psicodélicas. No mundo patriarcal onde vivemos, mulheres que são mães são constantemente sobrecarregadas com os cuidados dos filhos. A falta de espaços para a inclusão de crianças na comunidade psicodélica frequentemente faz com que a presença das mães nesses espaços seja impossibilitada, deixando-as longe do acesso aos psicodélicos e privilegiando homens. É importante que pensemos sobre o lugar das mães nos espaços psicodélicos.

4. Responsabilizar os homens nesse debate. Homens são constantemente negligentes no cuidado de seus filhos e em assuntos relacionados à vida familiar e doméstica. A integração e responsabilização dos homens no debate sobre parentalidade psicodélica pode ser uma boa oportunidade de mudar esse paradigma, desconstruir visões machistas de gênero, e produzir relações mais equilibradas e equitativas nesse ambiente.

É importante que os espaços psicodélicos tenham uma visão inclusiva e integrativa sobre as crianças, que abarque suas necessidades e potencialidades. Não só sobre crianças brancas, mas também crianças pretas e indígenas, bem como crianças com deficiências. O debate sobre psicodélicos e diversidade também é importante para que possamos desconstruir visões heteronormativas sobre o assunto, e incluir todas as famílias na conversa, não só famílias cis heterossexuais, mas também famílias LGBTQIA+.

5. Reconhecer e celebrar a diversidade das crianças e das famílias.  Crianças são tão diversas quanto os adultos, e essa diversidade precisa ser contemplada e reconhecida. É importante que os espaços psicodélicos tenham uma visão inclusiva e integrativa sobre as crianças, que abarque suas necessidades e potencialidades. Não só sobre crianças brancas, mas também crianças pretas e indígenas, bem como crianças com deficiências. O debate sobre psicodélicos e diversidade também é importante para que possamos desconstruir visões heteronormativas sobre o assunto, e incluir todas as famílias na conversa, não só famílias cis heterossexuais, mas também famílias LGBTQIA+. Toda família tem o direito de se sentir segura na comunidade psicodélica.

Desenho de Rosio, una crainça que vive na Vila Céu do Mapiá, representando uma palestra de “Padrinho” Sebastião, liderança do Santo Daime.

6. Orgulho Psicodélico. Ainda hoje é uma grande carga de estigma e preconceito social quando falamos sobre o uso de psicodélicos, frequentemente associados no imaginário popular ao uso problemático de drogas e a práticas “demoníacas”. No Brasil, por exemplo, há casos de crianças daimistas que sofreram bullying na escola por admitirem fazerem parte de uma religião ayahuasqueira. É importante militar pela causa psicodélica, e lutar para que o ambiente escolar e outros territórios de convívio social possam se ver livres da violência simbólica contra crianças que fazem parte de tradições psicodélicas. Há vários relatos do risco de perda de guarda de filhos por conta do uso de psicodélicos pelos pais e processos jurídicos envolvendo a proibição de mães e pais de levarem suas crianças a cerimônias religiosas com uso de psicodélicos, ainda que somente para assistir e acompanhar os pais. Precisamos falar sobre esses assuntos. Fazer parte de uma família ou tradição psicodélica não deve ser motivo para tabus, vergonha ou constrangimento.

7- Estudar e aprender com as tradições indígenas. Maternidade e paternidade psicodélica é um assunto novo para o mundo occidental, mas algo ancestral em muitas tradições indígenas. Na cultura de vários povos originários, gerações e gerações de famílias estão integradas no seio de experiências comunitárias e rituais com o uso de plantas sagradas. Crianças acompanham seus paise m suas atividades, e são educadas no conhecimento das plantas e de suas propriedades. Sabemos que esse tipo de assunto pode causar um choque cultural para pessoas educadas na sociedade colonial, que consideram que o contato de crianças com substâncias psicodélicas é sempre problemático e irresponsável. É fundamental que observemos as culturas tradicionais para aprender como é possível que crianças estejam presentes de forma saudável em contextos onde psicodélicos são utilizados.

8. Pesquisar os potenciais terapêuticos de psicodélicos na experiência de ser mãe e pai. Relatos etnográficos indicam que a experiência psicodélica pode ajudar mães e pais a lidar com a síndrome do impostor e com a culpa materna /paterna, além de ajuda-los positivamente a ressignificar a experiência de serem pais. Pesquisas científicas que aprofundem o tema são mais do que bem vindas.

9- Divulgação científica psicodélica para crianças e jovens. TO tema dos psicodélicos está até hoje muito atrelado ao estigma social, à produção acadêmica e à contracultura voltada aos adultos. Há uma lacuna de material educativo e científico a respeito de psicodélicos voltado para crianças e jovens. Preencher essa lacuna pode ser uma boa forma de educação pública, bastante diferente da perspectiva hegemônica de guerra às drogas. Imagine só, um mundo onde crianças são educadas a respeitar e interagir com as plantas!

10. Criar redes de apoio. É muito importante que famílias psicodélicas tenham a condição de dialogar e interagir umas com as outras. É bastante significativo que crianças que fazem parte de grupos minoritários tenham amigos e conheçam famílias que são como elas. É saudável ter amigos psicodélicos, e uma rede de apoio pode ser bastante útil, não somente para lutar contra estigmas sociais, mas também para construir um cuidado coletivo voltado para crianças e jovens e combater abusos sexuais contra essas populações. Contar com o suporte de pais mães psicodélicos também é algo que pode ajudar pessoas que descobrem o universo dos psicodélicos com idade madura, no sentido de ajuda-los a não esconder essa experiência de sua família e seus filhos. Compartilhar as próprias experiências com pessoas que podem entendê-las pode ser benéfico e bom para a autoestima.

No momento nós estamos organizando um programa de educação sobre maternidade e paternidade psicodélica como parte do projeto Jornadas de Kura. Essa iniciativa terá como foco uma conversa franca e aberta sobre o assunto, voltada para a educação pública, incluindo tópicos como diversidade, construção de espaços seguros, integração de crianças e jovens, e militância para famílias psicodélicas.

O campo dos psicodélicos está crescendo de forma muito rápida e ampla, e milhares de pessoas interessadas no assunto são também mães, pais e cuidadores. Debater o tema da maternidade e paternidade psicodélica é importante para que o potencial dos psicodélicos de melhorar a vida das pessoas e comunidades seja alcançado, convidando mães, pais e crianças a tomar parte e tornando esse ambiente mais inclusivo e diverso. Esperamos que os incipientes tópicos levantados por esse texto possam inspirar as pessoas a refletirem mais sobre o assunto, para benefício de toda a comunidade psicodélica global.

 Nota: Gostaríamos de agradecer à Dra. Bia Labate por sua contribuição editorial a esse artigo.

Nossa rede de apoio local após a cerimônia de 200 trabalhos espirituais de nosso centro, em 2019.

Referências:

Dyck, E., Farrell, P., Labate, B. C., Cavnar, C., Gabriell, I., & Assis, G. (2022). Mujeres y psicodélicos. Lunaria Ediciones.

Hanna, J. (2004). Parenting in a war zone: A conversation with the Grey family. Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies, 14(2), 13–20. https://maps.org/news-letters/v14n2/v14n2_15-22.pdf

Kahmann, A. P., Albuquerque, M. B. B., & Silveira, É. D. S. (2018). Santo Daime e educação: nrrativas, diálogos e experiências. EDUNISC.

Kronman, R. (2020, June 5). Children and psychedelics: Using Indigenous wisdom to examine Western paradigms. Chacruna Institute. https://chacruna.net/children-and-psychedelics-using-indigenous-wisdom-to-examine-western-paradigms/

Labate, B. C. (2011). Consumption of ayahuasca by children and pregnant women: Medical controversies and religious perspectives. Journal of Psychoactive Drugs, 43(1), 27–35.

Lira, W. L., & Ferreira, H. M. (2018). “Crianças do Astral”: a infância no Centro Ayahuasqueiro Flor de Jasmim. Caderno Eletrônico de Ciências Sociais: Cadecs, 6(2), 7–31.

Oliveira, L. P. M. D. (2015). Crianças que bailam na floresta: avaliação psicológica das crianças participantes da Doutrina do Santo Daime residentes na Vila Céu do Mapiá, Pauiní/AM. Universidade de São Paulo.

Rodrigues, J. & Assis, G. (2022, March 9). Ayahuasca and childbirth in the Santo Daime tradition: Solidarity among women and psychedelic cultural resistance. Chacruna Institute. https://chacruna.net/ayahuasca-and-childbirth-in-the-santo-daime-tradition/

Shaefer, S. (2019). Beautiful flowers: Women and peyote in Indigenous traditions. Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies, 29(1), 8–13.https://s3-us-west-1.amazonaws.com/mapscontent/news-letters/v29n1/v29n1_p8-13.pdf

Stuart, R. (2004). Psychedelic family values. Multidisciplinary Association for Psychedelic Studies, 14(2), 47–52. https://maps.org/new letters/v14n2/psychedelic_family_values.pdf

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