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A descriminalização da maconha no Brasil para além do uso medicinal: associativismo canábico e direitos humanos

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Educación pública sobre plantas psicoactivas, ahora en portugués y español.
Educação pública sobre plantas psicoativas agora em português e espanhol.

Francisco Savoi de Araújo, M.A., tem mestrado em Antropologia pela UFBA. Seus principais interesses de pesquisa são o uso religioso de substâncias psicoativas, especialmente na religião do Santo Daime e na cultura Rastafari.

Mauro Machado Chaiben é especialista em Direito e Política Tributária pela FGV/DF, e também em Direito e Jurisdição pela ESMA/DF, com pesquisas voltadas para a construção de uma nova política de drogas e marcos regulatórios pelo direito de acesso à saúde.


O ano de 2021 começou com forte pesar no cenário da maconha no Brasil, com a notícia do falecimento do Padre Antônio Luiz Marchioni, carinhosamente conhecido por Padre Ticão. A sua forte liderança religiosa e social ganhou destaque na Paróquia de São Francisco de Assis, localizada em Ermelino Matarazzo, zona leste de São Paulo. Desde 1982, o padre já vinha se empenhando na defesa da população mais carente, buscando a redução das desigualdades sociais, tendo se engajado, nos últimos anos, na defesa do uso da maconha. Tal postura de vanguarda foi motivada por uma carência vislumbrada na Igreja Católica frente às necessidades dos tempos atuais, principalmente no que diz respeito às ações em prol da qualidade de vida e dignidade da população[1].

De fato, o uso da maconha no Brasil foi difundido, principalmente, pelas pessoas escravizadas.

De fato, o uso da maconha no Brasil foi difundido, principalmente, pelas pessoas escravizadas. A sua proibição foi marcada por forte cunho racista e perseguidor das culturas, costumes e tradições de origem africana, tendo ocorrido poucas décadas depois da abolição da escravidão (1888). Desse modo, foi possível dar continuidade às práticas de segregação e exclusão social instauradas no país desde o colonialismo. A elite branca dominante conseguiu, então, se perpetuar no poder, mantendo sua hegemonia sobre as classes menos favorecidas sob o pretexto da “guerra às drogas”.

Nesse caso, houve um questionamento sobre as práticas de cura que não se conformavam às diretrizes do emergente mercado farmacêutico, o que acabou estabelecendo uma autoridade para aquilo que seria considerado como a medicina mais legítima: a ciência médica ocidental.

Renato Malcher-Lopes e Sidarta Ribeiro (2019) destacam que, até certo momento, era comum que muitos curandeiros receitassem a maconha para sanar diversos tipos de doenças. A partir do século XX, porém, já se consolidava no Brasil uma nova classe médico-científica, cujas influências na sociedade foram determinantes para a criminalização da erva. Nesse caso, houve um questionamento sobre as práticas de cura que não se conformavam às diretrizes do emergente mercado farmacêutico, o que acabou estabelecendo uma autoridade para aquilo que seria considerado como a medicina mais legítima: a ciência médica ocidental (Vargas, 2008). Gradativamente, então, a assim chamada “medicina popular” foi sendo desprezada, sob uma perspectiva moralista, a qual sustentou as legislações que criminalizam o uso de certas drogas na sociedade.

Atualmente, porém, vivemos uma conjuntura que anuncia as possibilidades de mudanças na legislação brasileira. Com os avanços nas pesquisas em torno do tema, percebemos um nítido crescimento de aceitação em torno do uso medicinal da maconha, diante de resultados comprovados para o controle de determinadas doenças, tais como epilepsia, esclerose múltipla, mal de Alzheimer, mal de Parkinson, dentre outras (Malcher-Lopes e Ribeiro, 2019). Com os debates ainda bastante reservados em torno do uso medicinal, porém, muito pouco se fala a respeito do uso cultural; social adulto[2]; religioso; e/ou industrial.

Quando falamos do contexto medicinal, podemos observar uma imposição da complexa estrutura legislativa e regulatória que circunda o tema. Nesse caso, as normas e registros quanto ao uso da maconha no Brasil ficam determinadas quase que inteiramente pela ANVISA (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), órgão regulador que atua no controle sanitário de produtos nacionais e importados. Logo, o acesso à erva segue bastante restrito, dependendo de prescrição médica, o que demonstra, mais uma vez, o poder da indústria farmacêutica para garantir a monopolização da saúde.

Veremos que uma abordagem mais plural para a descriminalização da maconha pode ser efetivada a partir do “associativismo canábico”, um tipo de regulação capaz de integrar as diversas formas de se utilizar a erva. Iremos nos atentar, aqui, para alguns detalhes da sua utilização enquanto um sacramento religioso, especificamente na cultura Rastafari e na religião do Santo Daime.

 Evidenciamos, portanto, a necessidade de desmistificar as modalidades que vão além do uso medicinal. Veremos que uma abordagem mais plural para a descriminalização da maconha pode ser efetivada a partir do “associativismo canábico”, um tipo de regulação capaz de integrar as diversas formas de se utilizar a erva. Iremos nos atentar, aqui, para alguns detalhes da sua utilização enquanto um sacramento religioso, especificamente na cultura Rastafari e na religião do Santo Daime.

Uso religioso

Sob o prisma do uso religioso, logo pensamos na cultura Rastafari, a qual se fundamenta centralmente na Bíblia. Apesar de ter surgido na Jamaica, o Rastafari tem como figura de devoção e líder espiritual Haile Selassie, nome recebido pelo nascido Tafari Makonnen na ocasião de sua coroação como imperador da Etiópia, na década de 1930. Recebendo influências do movimento conhecido como “etiopianismo”, os afro-jamaicanos fundadores do Rastafari compreenderam a coroação de Selassie como uma profecia bíblica , o que atribuiu ao governante etíope o status de um verdadeiro Messias. De fato, um dos títulos recebidos por Selassie da Igreja Ortodoxa Etíope, uma igreja cristã, foi “Leão de Judá”, o que corresponde justamente à passagem bíblica, contida no capítulo 05 do livro de Apocalipse, que afirma sobre a volta do Redentor: “eis aqui o Leão da tribo de Judá, a raiz de Davi, que venceu, para abrir o livro e desatar os seus sete selos”.

Quanto à maconha, acredita-se que a erva tenha sido introduzida como um sacramento na cultura Rastafari a partir do contato entre migrantes indianos e os negros já residentes na Jamaica[3]  (MacRae, 2016). Essa afirmação pode ser verificada mediante o nome, em sânscrito, pelo qual os próprios rastas designam a planta: ganja. A sua proibição na ilha caribenha, no ano de 1913, fez com que os afro-jamaicanos fossem ainda mais marginalizados. Logo, aqueles usuários que não se omitiam perante o “babylon system” [4] consequentemente assumiram uma postura de resistência contra as leis jamaicanas.

Nesse caso, é importante destacar que uma das grandes influências que contribuíram para a formação do Santo Daime foi o vegetalismo, nome pelo qual são conhecidas as práticas de cura amazônicas que têm como ponto central a utilização das assim chamadas “plantas mestras”, “plantas professoras” ou “plantas de poder”. Logo, a Santa Maria foi reconhecida, dentro da ICEFLU, como mais uma dessas plantas de poder.

Na contramão das narrativas proibicionistas que sustentam o suposto potencial de desregramento moral/social ocasionado pelo uso da maconha, dentro da cultura Rastafari a erva se encontra integrada a preceitos comportamentais que não podem ser ignorados no momento de sua consagração (MacRae, 2016). O mesmo ocorre no âmbito de sua utilização dentro de uma das vertentes da religião do Santo Daime, a ICEFLU (Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal), quando recebe o nome de Santa Maria. Nesse caso, é importante destacar que uma das grandes influências que contribuíram para a formação do Santo Daime foi o vegetalismo, nome pelo qual são conhecidas as práticas de cura amazônicas que têm como ponto central a utilização das assim chamadas “plantas mestras”, “plantas professoras” ou “plantas de poder”. Logo, a Santa Maria foi reconhecida, dentro da ICEFLU, como mais uma dessas plantas de poder [5]. 

De fato, para que a liberdade da bebida sagrada não seja comprometida, as religiões ayahuasqueiras devem se submeter a uma normativa que proíbe a sua associação com outros psicoativos considerados ilícitos, como a maconha, por exemplo.

É deste ponto que partiu a lembrança inicial referida ao Padre Ticão. Nos últimos anos de sua militância em prol do uso da maconha, ele abriu as portas de sua paróquia para a realização de cânticos e orações em louvor a Santa Maria. Esta reverência à lembrança espiritual do Padrinho Sebastião, líder-fundador da ICEFLU, revela a forte insegurança jurídica que gira em torno do uso religioso da ayahuasca. De fato, para que a liberdade da bebida sagrada não seja comprometida, as religiões ayahuasqueiras devem se submeter a uma normativa que proíbe a sua associação com outros psicoativos considerados ilícitos, como a maconha, por exemplo.

E aqui se verifica o contrassenso: a proibição do uso da maconha coloca na ilegalidade, consequentemente, a Santa Maria; porém, havendo a descriminalização, o seu uso junto com a ayahuasca fica automaticamente permitido. Assim, é de extrema relevância trazer para o debate da legalização da maconha as delimitações fixadas quanto ao reconhecimento do uso religioso da ayahuasca. Porém, o debate somente em torno do uso religioso não é suficiente para dar a amplitude desejada ao tema, mas já permite vislumbrar as possibilidades de construção de uma regulamentação mais abrangente.

Associativismo canábico

Dentre os diversos modos de uso, seja para fins medicinais, religiosos e/ou sociais, destacamos aqui as periódicas reuniões marcadas pelas “rodas de fumo”, organizadas pelo que ficou conhecido como “clubes de diambistas”, em clara alusão à “diamba”, nome atribuído a erva pelos africanos.

Sabemos que no período anterior ao desenvolvimento, no Brasil, da “guerra às drogas”, a maconha já era utilizada amplamente entre os escravizados e populares (MacRae, 2016). Dentre os diversos modos de uso, seja para fins medicinais, religiosos e/ou sociais, destacamos aqui as periódicas reuniões marcadas pelas “rodas de fumo”, organizadas pelo que ficou conhecido como “clubes de diambistas”, em clara alusão à “diamba”, nome atribuído a erva pelos africanos. Atualmente, podemos observar no movimento de descriminalização da maconha o crescimento do assim chamado “associativismo cannábico”, algo similar aos clubes de diambistas que já ocorriam no passado, porém, agora protagonizado majoritariamente pelos segmentos populacionais mais privilegiados.

Visando a concretização de uma tendência que possa abranger cada vez mais pessoas, o modelo associativo é capaz de proporcionar, de maneira responsável, efetivo controle dos usuários. As associações teriam autoridade não só para definir os locais apropriados para o uso da erva, mas também para negar a distribuição da substância a grupos não recomendados, tais como menores de idade ou aqueles que porventura possuam distúrbios psíquicos. No âmbito internacional, para fins de comparação, as referências desse modelo de regulação são os “Cannabis Social Clubs” da Espanha, destinados a cultivar e fornecer cannabis entre os seus membros em espaços sociais reservados, com acesso restrito a seus associados.

Segundo a Comissão Brasileira sobre Drogas e Democracia (CBDD), organizada no ano de 2011, os Clubes Sociais são citados como exemplo de nova prática em política de drogas. Para todos aqueles que pretendem evitar os riscos subjacentes ao contato com o narcotráfico, os assim chamados “clubes canábicos” são uma alternativa segura que vem se consolidando em torno do debate sobre o uso da maconha. Sem dúvidas, o modelo do associativismo pode contemplar todos os diversos fins para os quais a erva se presta, desde o medicinal – com uma roupagem diferente dos objetivos da indústria farmacêutica – passando pelo uso adulto, social, recreativo, religioso e cultural. Assim, grupos como o Rastafari e o Santo Daime também podem partir dessa mesma base legal para regulamentar o uso da ganja/Santa Maria.

Criminalização da maconha: uma afronta aos direitos humanos

A proibição da produção, porte e uso da erva para uso adulto afronta o princípio da dignidade e autonomia dos indivíduos.

Com esse texto buscamos destacar a necessidade de se ampliar o debate sobre a descriminalização da maconha, ultrapassando a sua dimensão medicinal, cuja importância, em suas particularidades, é de fato inquestionável. A proibição da produção, porte e uso da erva para uso adulto afronta o princípio dadignidade e autonomia dos indivíduos. Defendemos aqui que o exercício das liberdades fundamentais deve ser respeitado efetivamente, tendo em vista: a liberdade de pensamento, consciência, crença, e o direito de reunião pacífica. Em síntese, a associação para fins de produção e consumo da maconha deve ser resguardada como uma proteção de caráter individual, projetada em prol da efetiva proteção da coletividade.

Assim, a capacidade de autodeterminação das pessoas deve ser mais valorizada, de tal forma a estimular os diferentes modos de vida, ideologias, hábitos e costumes existentes na humanidade. A própria história brasileira aqui referida, no que diz respeito ao caráter racista da criminalização da maconha, já bem sinaliza a necessidade de libertar a sociedade dos preconceitos ainda impostos aos grupos marginalizados e classes menos favorecidas. E convém dizer: não há qualquer razão para criminalizar mera conduta de um indivíduo pressupondo um prejuízo público-social que de fato não se concretizou, principalmente se outros campos do Direito – como direito de família, direito de vizinhança, direito da criança e do adolescente, responsabilidade civil, até mesmo o próprio direito penal – são capazes de coibir eventuais excessos associados ao uso da maconha.

Igualmente, para que possa haver uma maior harmonia nas relações sociais, todas aquelas pessoas que não simpatizam com o mesmo costume também merecem respeito. Desse modo, será possível colocar um ponto final no ciclo vicioso da guerra às drogas, estabelecida por concepções e valores evidentemente ultrapassados. Portanto, defendemos um debate democrático baseado nos ideais fraternos, de forma a contemplar a igualdade social e o fim da discriminação de alguns grupos sociais que se pretende marginalizar. Enfim, a maconha é uma planta disposta na natureza, e é assim que se dá o seu consumo, sem qualquer outra interferência química. Com isso, lembrando mais uma vez o saudoso Padre Ticão: “Deus criou a natureza e é da natureza que nós tiramos a vida e a saúde”.

Arte de Trey Basher

Esse texto foi originalmente publicado em inglês no portal do Chacruna Institute.

REFERÊNCIAS:

Malcher-Lopes, R. & Ribeiro, S. (2019). Maconha, Cérebro e Saúde. (São Paulo, SP: Yagé).

Vargas, E. V. (2008). “Fármacos e outros objetos sócio-técnicos: notas para uma genealogia das drogas”. In B. C. Labate; S. L. Goulart; M. Fiore; E. MacRae & H. Carneiro (Eds.), Drogas e Cultura: novas perspectivas (pp. 41 – 64). (Salvador, BA: Edufba).

MacRae, E. (2016). “Canabis, Racismo, Resistência Cultural e Espiritualidade”. In E. MacRae & W. C. Alves (Eds.), Fumo de Angola (pp. 23 – 58).


[1] Como contraponto, vale destacar aqui a teologia da libertação, que a partir de 1970 começou a se engajar mais ativamente, com Leonardo Boff, de forma bastante comprometida junto às classes populares.

[2] “Uso adulto” tem sido uma categoria de uso da maconha que vem conquistando espaço nos debates públicos sobre o tema, visando a substituição da ideia infantilizada e pouco séria correspondente ao suposto “uso recreativo”.

[3] À época de Selassie, religião e política caminhavam juntas.

[4] Na cosmovisão rastafari, Babilônia pode designar toda e qualquer forma de opressão.

[5] Vale destacar que nem todas as vertentes do Santo Daime reconhecem a Santa Maria enquanto uma “planta de poder”, vindo inclusive a demonizar a erva, certamente por conta do moralismo perpetuado pela narrativa proibicionista.

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