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Conspiritualidade: A face oculta da revolução psicodélica

Neste texto, Glauber Assis reflete como o crescente interesse global nos psicodélicos como ferramentas para melhorar a saúde e aumentar a criatividade. Mas o que falamos, ou deixamos de falar, quando debatemos sobre o universo dos psicodélicos?

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El Dr. Glauber Loures de Assis es Director Asociado de Chacruna Latinoamérica en Brasil. Es Doctor en Sociología por la Universidad Federal de Minas Gerais (UFMG) e Investigador Asociado del Grupo Interdisciplinario de Estudios Psicoactivos (NEIP) en Brasil. Sus principales intereses incluyen las religiones ayahuasqueras, los nuevos movimientos religiosos, la internacionalización de las religiones brasileñas, el uso de drogas en la sociedad contemporánea y la paternidad psicodélica. Es autor de numerosos artículos y capítulos de libros, y coeditor del libro Women and Psychedelics: Uncovering Invisible Voices (Synergetic Press/Chacruna Institute, en prensa). Glauber es también un practicante de ayahuasca con 15 años de experiencia. Ha construido esta práctica en diálogo con su comunidad local de ayahuasca brasileña y con la bendición de ancianos y activistas indígenas de Brasil. También es el líder de Jornadas de Kura, un centro de medicina vegetal en Brasil que promueve un puente entre el uso ceremonial de plantas sagradas y la ciencia psicodélica. Es padre de 3 hijos y vive con su esposa Jacqueline Rodrigues en Santa Luzia, Minas Gerais, Brasil.

Doctor en Sociología por la UFMG y Director Asociado de Chacruna Latinoamérica en Brasil

Nesse exato momento, o Norte Global está experimentando uma explosão no interesse em psicodélicos, que tem levado terapeutas, acadêmicos, artistas, empresários, ONGs e pesquisadores a abraçar as plantas sagradas como ferramentas para melhorar a saúde e aumentar a criatividade.

Algumas pessoas dizem que vivemos uma verdadeira revolução psicodélica. Uma renascença psicodélica. Uma transformação global de consciência.

Mas não seria essa uma responsabilidade muito grande para ser colocada sobre os ombros de substâncias?

Quando debatemos os psicodélicos, na verdade não falamos somente sobre substâncias. Falamos também sobre cultura, espiritualidade, tradições do Sul Global, e sobre práticas e saberes protegidos por séculos, desde tempos imemoriais, pelos povos originários. Falamos sobre intercâmbios culturais e financeiros. Falamos, mesmo sem saber, sobre ideologia. Sobre política. E todas essas dimensões presentes no tema dos psicodélicos trazem grandes desafios sobre os quais é necessário que tenhamos consciência e capacidade de reflexividade (auto)crítica.

Muitas vezes falamos de forma ufanista sobre psicodélicos como uma panaceia, mas não podemos nos esquecer das questões geopolíticas, do neocolonialismo, da indústria de armas, das guerras por terra e por petróleo, da exploração de trabalhadores pobres, do patriarcado e da desigualdade social. Infelizmente, não vamos resolver esses problemas com uma sessão de terapia individual ou com uma revelação mística produzida pelo efeito de psicodélicos.

Psicodélicos podem sim ser positivos, no nível individual, para o tratamento de condições de saúde específicas. Mas eu preciso te dizer uma coisa: Os psicodélicos não vão salvar o mundo. Uma boa parte dos problemas que enfrentamos hoje, incluindo aí as milhões de pessoas que sofrem de depressão, são problemas que têm profundas raízes sociais.

Psicodélicos podem sim ser positivos, no nível individual, para o tratamento de condições de saúde específicas. Mas eu preciso te dizer uma coisa: Os psicodélicos não vão salvar o mundo. Uma boa parte dos problemas que enfrentamos hoje, incluindo aí as milhões de pessoas que sofrem de depressão, são problemas que têm profundas raízes sociais.

A narrativa da “salvação do mundo” através dos psicodélicos deixa de lado a complexidade da experiência psicodélica e sua íntima relação com os contextos culturais e sociais, que possuem uma relevância decisiva para modular a experiência das pessoas e preenche-la de sentido.


O que é Conspiritualidade?

Adoramos a palavra “psidocélicos” – que significa “Mente Manifesta” – mas temos que reconhecer que seria melhor se algumas mentes ocidentais simplesmente não se manifestassem. A manifestação de uma mente doente pode ser um problema, e os psicodélicos podem até mesmo agravar problemas individuais e sociais se utilizados de uma maneira temerária.

Para mencionar um exemplo: Quem não se lembra do caso de Jake Angeli, o famigerado “Xamã do Capitólio”, que invadiu o Capitólio dos Estados Unidos e tentou um golpe contra a posse do presidente Biden? Pois Angeli é um cara bastante psicodélico, que organizava rituais com peiote, só come comida orgânica, e é uma pessoa “espiritualizada”. Este homem, que queria mudar o mundo através de psicodélicos e da expansão da consciência, também foi membro do movimento QAnon, que se organiza em torno da ideia de que há uma conspiração de gente incrivelmente poderosa que extrai o sangue de bebês para produzir adrenocromo, composto químico que supostamente seria uma fonte milagrosa da juventude, e que tem como objetivo destruir Donald Trump, entendido por adeptos do QAnon como um enviado de Deus para proteger o planeta Terra.

Esse exemplo não é um caso isolado. Há milhares de pessoas no universo psicodélico com um perfil semelhante. Crenças semelhantes (um exemplo brasileiro é o caso de membros bolsonaristas da União do Vegetal, do Santo Daime e do neoxamanismo urbano que propagam ideias conspiratórias de ideólogos como Olavo de Carvalho). Além disso, infelizmente esse tipo de visão de mundo é influenciada em grande medida por fontes do Norte Global, que exportam esse tipo de visão de mundo para países periféricos no interior do capitalismo.

Jake Angeli, conhecido como “QAnon Shaman”, segura uma placa com os dizeres “Q Me enviou” com apoiadores do presidente dos EUA, Donald Trump. AFP – OLIVIER TOURON

Esse tipo de perfil social que pulula nas redes psicodélicas é composto de pessoas que questionam o aquecimento global antropogênico e os consensus científicos, em favor de teorias da conspiração e de um autodidatismo oriundo de conteúdo produzido por influenciadores digitais de extrema direita. Figuras como JP Sears, Davi Icke, Jordan Peterson e Joe Rogan são constantemente citadas e têm seu conteúdo compartilhado nas redes sociais por milhares de pessoas ao redor de todo o mundo.

“Teoria dos reptilianos”, “Perigo da tecnologia 5G”, “Covid como vírus chinês criado em laboratório para destruir o Ocidente”, “conspiração illuminati” e “plano de Bill Gates para destruir a humanidade” são exemplos de anúncios alarmistas que fornecem uma intepretação bastante particular das crises sociais, ambientais e de saúde experimentadas nos anos recentes. Anúncios esses encubados e disseminados todos do Norte Global e importados por pessoas do Sul Global.

Alguns antropólogos nomearam esse tipo de perfil de pessoas. E elaboraram o conceito de Conspiritualidade. (Ward & Boas, 2011).

Em resumo, Conspiritualidade é um termo que designa a sobreposição entre a espiritualidade Nova Era (e algumas vezes também o uso de psicodélicos) e a subcultura de bem estar holístico com negacionismo científico e teorias da conspiração.

EM RESUMO, CONSPIRITUALIDADE É UM TERMO QUE DESIGNA A SOBREPOSIÇÃO ENTRE A ESPIRITUALIDADE NOVA ERA (E ALGUMAS VEZES TAMBÉM O USO DE PSICODÉLICOS) E A SUBCULTURA DE BEM ESTAR HOLÍSTICO COM NEGACIONISMO CIENTÍFICO E TEORIAS DA CONSPIRAÇÃO.

Claro, nem todas as pessoas que fazem parte do universo Nova Era ou do campo psicodélico são conspiritualistas. E nem todo negacionista ou adepto da extrema direita está conectado com o mundo new age ou é fã de psicodélicos. Mas há uma parcela expressiva de pessoas para as quais há afinidades eletivas entre espiritualidade Nova Era, negacionismo e teorias da conspiração.

Para refinar um pouco mais nossa discussão, pode ser útil definir os termos “negacionismo” e “teorias da conspiração”.


Nada é o que parece

“Negacionismo” é um termo que revela aspectos fascinantes da conspiritualidade. Nega-se a ciência (questiona-se as vacinas, questiona-se a veracidade da pandemia, questiona-se a veracidade da mudança climática, entre outras coisas), nega-se fatos verificados em conflitos sociais, nega-se estatísticas públicas, nega-se tudo. Enfim, nega-se, o que também significa contrapor-se ao status quo. E neste sentido, o negacionismo, em particular o negacionismo conspiritualista, pode ter um apelo quase irresistível tanto para parcelas da população que estão ressentidas com o avanço de pautas progressistas e o fortalecimento de movimentos sociais de minorias enquanto permanecem estagnadas ou vivenciam situações de crise econômica, como para jovens brancos de classe média buscando sua voz, ou ainda para setores de elite que buscam justificar privilégios e tem saudosismo de um suposto período de bonança e prosperidade anterior.

Por sua vez, as teorias da conspiração são caracterizadas pela ideia de há uma força escondida, uma trama nefasta que controla a sociedade, a nação e no limite o mundo inteiro. Por aqui, percebe-se que “teorias da conspiração” são construções mentais muito distintas de meras conspirações, que podem ser reais e acontecem o tempo todo nos diferentes níveis sociais. Segundo as teorias da conspiração, os acontecimentos socialmente relevantes e que têm impacto nunca acontecem por acidente ou contingência, mas são milimetricamente planejados por elites que detém o poder. De acordo com essas ideias, nada é o que parece e tudo está interconectado, obedecendo a decisões de agentes poderosos e invisíveis à grande mídia e canais tradicionais de comunicação. Mídia essa que tentaria a todo custo manipular e esconder a verdade das pessoas. Pessoas que por sua vez são vigiadas e ludibriadas o tempo todo, para que não abram os olhos e enxerguem a verdade.

Além disso, costumam ser “teorias” absolutamente improváveis e cientificamente refutadas. Podemos citar como exemplos o terraplanismo, a crença de que a vacina contra Covid-19 mata mais do que o coronavírus, a afirmação de que o uso de máscaras não protege ninguém, mas faz parte de um plano diabólico para acabar com a identidade das pessoas, a recente afirmação de que o Brasil teria sido celeiro da humanidade há milhões de anos através da suposta civilização de Ratanabá, etc.

A vanguarda se tornou distópica. Isso passa também pela cooptação de termos e símbolos associados à movimentos de vanguarda progressista, como “desobediência civil”, “contracultura”, “revolução” e “ambientalismo”. A vanguarda conspiritualista clama então pela necessidade do autodidatismo e de que as pessoas “pesquisem” por conta própria (via canais do YouTube e fóruns da internet) para compreender o que está acontecendo. Importante notar, contudo, que o impulso e o desejo pela transformação social estão sempre presentes nas narrativas da conspiritualidade. Conspiritualistas estão o tempo todo falando em “revolução”, “grande mudança” e “transformação”. Essa transformação almejada, contudo, não será promovida por movimentos sociais organizados, mas pela transformação do self, o “despertar da consciência” e a “saída da matrix”.


Keane Reeves como Neo; Donald Trump; Laurence Fisbbume como Morpgheus ()AP/Getty/Warner Bros. Pictures/Photo Montage by Salon

1. Apelo à ideia de Matrix.

A ideia de “matrix” é muito presente e evocada nas vozes conspiritualistas. Remete, logicamente, ao filme homônimo de ficção científica, e muito especificamente a uma leitura de extrema direita realizada do filme. Já existe uma literatura interessante sobre isso, que mostra como o filme matrix foi cooptado pela extrema direita, fato que acontece também com outros símbolos, ícones e produções culturais que nascem originalmente a partir de um nicho, por assim dizer, progressista, como é o caso da estética vaporwave, bastante utilizada por bolsonaristas no Brasil. Sob o pseudônimo de Mencius Moldbug, Curtis Yarvin foi o primeiro a associar políticas antidemocráticas e fascistas com a metáfora do filme Matrix (Jones, 2019). A expressão “pílula vermelha” passou desde então a ser adotada por incels, neo-Nazis, apoiadores radicais de Trump e bilionários conspiritualistas. De acordo com conspiritualistas, além do “véu de Maia” da nada glamourosa vida cotidiana e dos boletos a pagar, há uma realidade mais real e mais importante que justifica condutas excepcionais e, no limite, atrocidades.


2. Uma resposta às crises da modernidade

Dado o problema moderno da bifurcação da natureza analisado por autores como Latour (1994), muitas pessoas sentem a necessidade de reconexão do ser humano com a natureza; juntamente com a crise das instituições e a crise da ciência, e da permanente necessidade individual de buscas por respostas existenciais às condições sociais estabelecidas, há um impulso da visão de mundo conspiritualista, que reduz a complexidade e dá sentido pra vida social. A conspiritualidade também oferece a possibilidade de “integração” subjetiva do indivíduo com forças superiores, a natureza, seres não humanos e o cosmos. Teorias da conspiração trazem explicações simples para situações complexas. Frente à imensa insegurança e incerteza sobre a Covid-19, pode ser tentador achar que China quer acabar com o ocidente e por isso fabrica o coronavírus em laboratório, por ex.


3. Narcisismo

Pesquisas incipientes (Joiner, 2017) já identificam um alto grau de narcisismo no chamado “jovem místico”. Essa tendência a uma visão egocentrada de mundo pode ser verificada na prevalência do discurso Nova Era focado no indivíduo, e na interpretação liberal e ideologicamente orientada de teses místicas de que o “caminho aponta para dentro”, “as above so below”, etc. Há também uma “ética da humildade e do não julgamento” prevalente no circuito Nova Era, que impede as pessoas de criticarem visões absurdas de mundo, preconceituosas ou mesmo genocidas, estimulando exageros ególatras. Não é incomum de que, frente a uma publicação falsa, preconceituosa ou violenta de um jovem místico, as pessoas o defendam dizendo que “não podemos julgar”. Tal fenômeno é impulsionado pelas redes sociais da internet e seu caráter por vezes exibicionista, que estimula incessantemente a busca por seguidores e a produção de engajamento.


4. Resposta a traumas pessoais

Nosso trabalho de campo também tem indicado que parcela não desprezível de conspiracionaistas é composta de pessoas que veem nesse discurso uma forma de resposta a seus próprios traumas do passado. O próprio exemplo de Jake Angeli é uma ilustração desse perfil. Problemas com o pai, com uso problemático de drogas, etc. O discurso conspiritualista permite ao indivíduo deslocar a explicação de seus problemas para a sociedade, e identificar como culpados outras pessoas, grupos ou forças ocultas e malignas. De novo, temos aqui as versões antagônicas de uma mesma dinâmica. Da mesma forma que identificamos, antes, que a conspiritualidade oferece um discurso de transformação e progresso social, só que pelo lado oposto ao iluminismo, ela também aponta para causas sociais para males individuais, só que novamente pelo lado oposto. Ao invés de identificar as causas nas relações de opressão de classe, por exemplo, identificam em dinâmicas ocultas (e sobrenaturais) entre atores sociais sob disfarce.


5. Influência da cultura gamer

A subcultura dos videogames é muito pródiga em construir narrativas alternativas; avatares, tramas intergaláticas, ideia de missão, comunidades que orbitam em torno dos games, fóruns bastante interativos na deep web, ideia de masterização, evolução de níveis, formação de clãs e criação de fóruns anônimos, etc. Em suma, há uma série de elementos da cultura gamer onde o mundo virtual acaba por interferir no mundo real. Como diz uma fala antológica do clássico cyberpunk Neuromancer (Gibson, 2019), para muitos jovens mergulhados no universo virtual, o mundo real se torna uma “prisão de carne”, menos real do que a simulação. Um exemplo importante aqui, que por razões de espaço não poderá ser aprofundado, é o jogo da “baleia azul”, criado em fóruns anônimos da internet e disseminado via redes, que levou vários jovens ao redor do mundo ao suicídio.


6. Desejo distorcido por mudança social

De certa forma, a mensagem da conspiritualidade é a transformação social. Uma transformação social ambiciosa, planetária e global. Uma transformação social por meio de uma reforma íntima consumista. Reformas democráticas, medidas redistributivas e pré-distributivas, bem como movimentos sociais de base, são algo ultrapassado, parte de uma “velha era” a ser superada. A “nova era” visa superar os antagonismos de classe e a “polaridade” das diferenças e desigualdades sociais, por meio do misticismo individualista e do consumo, e de homens salvadores supostamente destinados a cumprir uma missão profética na sociedade (como Jair Bolsonaro ou Donald Trump).


7. Misoginia

Um traço comum entre conspiritualistas é o forte machismo que costuma vir acompanhado de racismo e homofobia. Existe frequentemente, nesse universo, uma tentativa de defesa do tradicional, do “mundo que era bom antigamente”, etc. Ideia do retorno a uma realidade que já foi ou deveria ser é um mote importante e ilusório, bem como o saudosismo de um suposto patriarcado ancestral. Infelizmente, casos de diversos tipos de abusos praticados por homens são presentes nesse universo. Pesquisas que possam aprofundar as reflexões sobre a ligação entre conspiritualidade e misoginia serão muito importantes para melhor elucidação desse fenômeno, assim como iniciativas de combate ao abuso no interior do campo New Age e psicodélico.


8. Neuroplasticidade

Tecnologias xamânicas são amplificadoras daquilo que a pessoa carrega consigo em sua constituição psíquica; os psicodélicos e plantas sagradas são pluripotentes, isso é, podem precipitar mudanças em quaisquer direções, não só em direção a visões de mundo progressistas; ritos de transe místico podem levar à mudança do self, mas não necessariamente uma mudança para uma postura mais inclusiva e aberta à diversidade, mas também ao recrudescimento de posturas autocráticas e intolerantes. Experiências de êxtase espiritual e de jornadas transcendentais sob efeito de psicodélicos, ao contrário do que a ‘ingenuidade’ Nova Era costuma acreditar e propagar, podem precipitar estados de confusão mental, visões delirantes sobre o mundo, e posicionamentos autoritários e antidemocráticos (Pace e Devenot, 2021).

Tecnologias xamânicas são amplificadoras daquilo que a pessoa carrega consigo em sua constituição psíquica; os psicodélicos e plantas sagradas são pluripotentes, isso é, podem precipitar mudanças em quaisquer direções, não só em direção a visões de mundo progressistas; ritos de transe místico podem levar à mudança do self, mas não necessariamente uma mudança para uma postura mais inclusiva e aberta à diversidade, mas também ao recrudescimento de posturas autocráticas e intolerantes.


9. Apropriação cultural

Interessantemente, embora a Nova Era, ou New Age, seja um fenômeno fundamentalmente branco, urbano, vinculado a estratos médios ou elitizados e bastante escolarizados da população ocidental, boa parte das matrizes religiosas tradicionais que alimentam o desejo de consumo espiritual da Nova Era, como o vegetalismo peruano da ayahuasca e o budismo tibetano, é oriunda da periferia global e tem como praticantes pessoas não brancas e economicamente desprivilegiadas.

A apropriação cultural é necessária para a massificação e comercialização em grande escala de produtos e serviços desse mercado aberto em diálogo com conspiracionistas e a extrema direita. Como diz Dawson (2016), se a tradição não existisse precisaríamos inventá-la. É necessário haver conexão com os povos originários para a circulação de práticas e produtos ligados a suas culturas e conhecimentos ancestrais, só não a ponto de levar à empatia por suas lutas e reivindicações. A conexão espiritualista com as populações tradicionais e indígenas é e deve ser estritamente “espiritual”. Aliás, lutas sociais, como a luta pelo direito à terra, são vistas como questões mais densas, “que não vibram na quinta dimensão” almejada por alguns adeptos da New Age.

O discurso dos conspiritualistas remete constantemente à apropriação de elementos culturais de sociedades tradicionais. Estas sociedades tradicionais podem ser tanto míticas ou imaginárias, como Atlântida ou Ratanabá, ou reais, como povos originários que sofreram as mazelas da colonização europeia, o que é a maioria dos casos. E na perspectiva conspiritualista, estas sociedades que existem em estado de luta e resistência contra forças de genocídio e opressão colonial são despojadas de sua agência e seu saber é apropriado, muitas vezes com argumentos generalizantes de que “tudo é universal”, “tudo está conectado”, “somos todos irmãos”, “somos todos trabalhadores da luz”, etc.

Isso implica não apenas capitalizar em cima da evidente apropriação que se faz da cultura, seres vivos e objetos destas sociedades “exóticas”, como produzir também um simulacro das práticas assimiladas.

A modelo Karlie Kloss usa um cocar Lakota durante o Victoria’s Secret Fashion Show, em 2012, na cidade de Nova York. (Evan Agostini/Invision/Associated Press)

Capitalismo Psicodélico

Enquanto o intercâmbio e as trocas culturais são parte natural e integrante das relações sociais entre povos originários e não indígenas, a apropriação cultural exclui a reciprocidade e o reconhecimento às culturas originárias, inclusive relegando às mesmas um lugar folclórico e transformando suas histórias e suas culturas em mercadoria, sem pagar, obviamente, os devidos royalties.

Essa reflexão merece ser aprofundada e é mencionada apenas de passagem aqui, mas nos chama a atenção como a ayahuasca, o peyote e as plantas sagradas originárias do Sul Global, o xamanismo ameríndio, “magia africana”, “espiritualidade indiana” e práticas agroflorestais ancestrais e regenerativas são vendidas acriticamente como mercadoria decolonial (decolonialidade também é mercadoria!), alimentando o imaginário de classes médias do oeste branco sem produzir mudanças significativas na vida das populações tradicionais e originárias às quais fazem referências e homogeneizando-as indiscriminadamente.

Ao contrário da contracultura ocidental dos anos 1960, o “Renascimento Psicodélico” é um fenômeno pouco contestatório do ponto de vista político e cultural e bastante integrado ideologicamente ao capitalismo globalizado. Por essa razão, ao invés do termo “Renascimento Psicodélico”, achamos mais crível e realista a ideia de “Capitalismo Psicodélico”, isto é, a racionalização, em sentido weberiano, do uso tradicional de psicodélicos, que vem acompanhada do avanço da ciência em direção à produção de fármacos, da criação de um celebrity system no interior do campo (com direito a lista dos 100 maiores influencers do mundo psicodélico ) e da mercantilização dessas substâncias e seus ritos associados através de apropriação cultural.

Ao contrário da contracultura ocidental dos anos 1960, o “Renascimento Psicodélico” é um fenômeno pouco contestatório do ponto de vista político e cultural e bastante integrado ideologicamente ao capitalismo globalizado. Por essa razão, ao invés do termo “Renascimento Psicodélico”, achamos mais crível e realista a ideia de “Capitalismo Psicodélico”

Hoje, socialites, celebridades e empresários do Silicon Valley são entusiastas dos poderes visionários das substâncias psicodélicas. Um dos personagens mais influentes no campo dos psicodélicos, Tim Ferris, disse que, quase sem exceção, não conhece nenhum bilionário que não consuma regularmente psicodélicos.


Como podemos fazer diferente?

Como podemos ver, o campo psicodélico está replete de desafios. Se queremos superá-los, precisamos ter a coragem de pensar os psicodélicos para além dos resultados promissores dos clinical trials e das grandes conferências acadêmicas sobre o tema. Precisamos refletir sobre os usos de psicodélicos a partir de suas implicações culturais e políticas na vida das pessoas. Precisamos pensar no campo psicodélico não como um clubinho dos eleitos, mas como algo inserido numa realidade complexa atravessada por questões intricadas questões sociais e históricas.

Sugerimos aqui pelo menos cinco maneiras através das quais podemos pensar fora da caixa e fazer diferente.


Abraçar a diferença

Ao invés de propagar a ideia falaciosa de que somos todos iguais e estamos todos juntos em uma comunidade psicodélica global, podemos reconhecer que somos seres muito diferentes entre nós. Há muitas diferenças entre cientistas brancos do Norte Global e curandeiros tradicionais da Amazônia peruana, por exemplo. Há muitas diferenças entre bilionários brancos que são entusiastas de psicodélicos e mulheres pretas do Brasil que precisam pegar dois ônibus para chegar no seu local de trabalho. E tais diferenças também representam desigualdades na repartição dos benefícios dos saberes associados às substâncias, na exploração do trabalho, na destruição ambiental, epistemicídio, etc.

Ao invés de propagar a ideia falaciosa de que somos todos iguais e estamos todos juntos em uma comunidade psicodélica global, podemos reconhecer que somos seres muito diferentes entre nós. Há muitas diferenças entre cientistas brancos do Norte Global e curandeiros tradicionais da Amazônia peruana, por exemplo. Há muitas diferenças entre bilionários brancos que são entusiastas de psicodélicos e mulheres pretas do Brasil que precisam pegar dois ônibus para chegar no seu local de trabalho.

Ao reconhecer as diferenças nesse campo, podemos nos abrir para ouvir as vozes que tem sido historicamente silenciadas. Para aprender das culturas que tem sido dizimadas. E para adotar uma abordagem mais produtiva no sentido de construir alianças entre diferentes formas de conhecimento.


Cultivar a reciprocidade

Os guardiões imemorias das plantas sagradas e das culturas psicodélicas são os povos originários e as sociedades tradicionais.

muito importante que haja relações de reciprocidade sendo estabelecidades entre entusiastas brancos de psicodélicos e comunidades tradicionais. Quando você for participar de um ritual com psicodélicos, por exemplo, você pode tentar descobrir quais são as relações que os facilitadores locais possuem com lideranças indígenas. E você pode sempre dar preferência em apoiar ONGs, conferências, pesquisas e grupos religiosos comprometidos em dar algo de volta para os povos originários, como é o caso da Indigenous Reciprocity Initiative, por exemplo.

Você também pode viajar para comunidades tradicionais, aprender línguas indígenas, conhecer outras culturas, e apoiar e realizar doações para movimentos sociais aliados das lutas indígenas pelos seus direitos constitucionais.


Incluir pessoas pretas, minorias sociais e a comunidade LGBTQIA+

Séculos de opressão colonial, patriarcado e heteronormatividade também deixaram sua marca no campo psicodélico. Milhares de pessoas pretas e LGBT sofrem até hoje de preconceito e estigma social no universo psicodélico. É muito importante que a renascença psicodélica possa cultivar a justiça social e a inclusão de todas as pessoas como uma de suas pautas principais. Para isso, é fundamental olhar para as desigualdades sociais do Ocidente branco, exercer a empatia em relação às causas sociais das minorias, e construir espaços dialógicos onde todas as vozes possam ser ouvidas.

Mestre Irineu, homem preto nordestino que fundou a religião do Santo Daime, fumando tabaco, 1968. Crédito: Carlos Marques, Revista Manchete.

Levar as culturas, cientistas e lideranças do Sul Global a sério

O Brasil é hoje o terceiro país com maior número de artigos de impacto publicados sobre psicodélicos. O México é o país com o maior número de psicodélicos encontrados na natureza. A Bolívia tem uma tradição de pelo menos 1000 anos no uso de plantas sagradas visionárias.

É importante reconhecer os saberes tradicionais dos povos do Sul Global. Reconhecer as epistemologias indígenas como fontes válidas de conhecimento. Reconhecer as práticas ancestrais de cura como formas diferentes, porém valiosas de medicina que merecem respeito. Além disso,é importante reconhecer a liderança da pesquisa e produção científicas realizadas em países não anglófonos. Há pesquisa científica de ponta sendo conduzida na América Latina em várias áreas do conhecimento, da psiquiatria e da neurociência até a antropologia e as ciências sociais.


A revolução psicodélica necessita de educação psicodélica

O filósofo indígena Ailton Krenak é bastante crítico desse revival dos psicodélicos e do uso contemporâneo de plantas sagradas, que ele compara com uma “moda”. Uma “moda” análoga à popularidade que gurus indianos ganharam no Ocidente branco durante a explosão da contracultural norte-americana.

Segundo ele:

“Eles podem vender produtos com nome de ayahuasca, podem vender refrigerante que se chama ayahuasca, o que não podem vender é o modo como um xamã conversa com a planta, isso não se pode vender. As pessoas no máximo vão comprar um bilhete que não vai dar em lugar nenhum.”

Mais do que uma consciência individual ampliada, é importante que tenhamos uma consciência social ampliada. Que estejamos envolvidos com as lutas dos povos originários e que possamos incluir todas as pessoas e condições existenciais de vida no interior da renascença psicodélica. Uma revolução psicodélica exige de nós mais do que terapia psicodélica individual e investimento em pesquisa. Uma revolução psicodélica exige de nós também uma educação psicodélica.

Mais do que uma consciência individual ampliada, é importante que tenhamos uma consciência social ampliada. Que estejamos envolvidos com as lutas dos povos originários e que possamos incluir todas as pessoas e condições existenciais de vida no interior da renascença psicodélica. Uma revolução psicodélica exige de nós mais do que terapia psicodélica individual e investimento em pesquisa. Uma revolução psicodélica exige de nós também uma educação psicodélica.


Referências:

Dawson, A. (2016). If tradition did not exist, it would have to be invented: retraditionalization and the world ayahuasca diaspora. In The world ayahuasca diaspora (pp. 39-58). Routledge.

Gibson, W. (2019). Neuromancer (1984). In Crime and Media (pp. 86-94). Routledge.

Latour, B. (1994). Jamais fomos modernos. Editora 34.

Ward, C., and David V. (2011). The emergence of conspirituality. Journal of Contemporary Religion 26 (1): 103-121.

Jones, A. (2019). From neoreactionary theory to the alt-right. Critical Theory and the Humanities in the Age of the Alt-Right, 101-120.

Joiner, T. (2017). Mindlessness: The corruption of mindfulness in a culture of narcissism. Oxford University Press.

Pace, B. A., & Devenot, N. (2021). Right-wing psychedelia: Case studies in cultural plasticity and political pluripotency. Frontiers in Psychology, 4915.

Agradecimentos especiais a Marilia Coutinho.

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