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Tributo a Domingos Bernardo, herói brasileiro da ayahuasca (1941-2020)

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El Dr. Glauber Loures de Assis es Director Asociado de Chacruna Latinoamérica en Brasil. Es Doctor en Sociología por la Universidad Federal de Minas Gerais (UFMG) e Investigador Asociado del Grupo Interdisciplinario de Estudios Psicoactivos (NEIP) en Brasil. Sus principales intereses incluyen las religiones ayahuasqueras, los nuevos movimientos religiosos, la internacionalización de las religiones brasileñas, el uso de drogas en la sociedad contemporánea y la paternidad psicodélica. Es autor de numerosos artículos y capítulos de libros, y coeditor del libro Women and Psychedelics: Uncovering Invisible Voices (Synergetic Press/Chacruna Institute, en prensa). Glauber es también un practicante de ayahuasca con 15 años de experiencia. Ha construido esta práctica en diálogo con su comunidad local de ayahuasca brasileña y con la bendición de ancianos y activistas indígenas de Brasil. También es el líder de Jornadas de Kura, un centro de medicina vegetal en Brasil que promueve un puente entre el uso ceremonial de plantas sagradas y la ciencia psicodélica. Es padre de 3 hijos y vive con su esposa Jacqueline Rodrigues en Santa Luzia, Minas Gerais, Brasil.

Doctor en Sociología por la UFMG y Director Asociado de Chacruna Latinoamérica en Brasil

Domingos Bernardo: O jurista defensor da ayahuasca

Às 9h da manhã do dia 17 de agosto de 2020, a comunidade ayahuasqueira despediu-se de um de seus mais importantes e discretos defensores: o jurista brasileiro Domingos Bernardo.

Se hoje você pode tomar ayahuasca com segurança em lugares tão diferentes como Brasil, EUA e Espanha, e acompanhar a popularização cada vez maior da bebida sagrada e sua diversidade de usos e formas culturais, você provavelmente deveria dizer a Domingos Bernardo: “obrigado”

Talvez você ainda não tenha sido devidamente apresentado a ele, mas se hoje você pode tomar ayahuasca com segurança em lugares tão diferentes como Brasil, EUA e Espanha, e acompanhar a popularização cada vez maior da bebida sagrada e sua diversidade de usos e formas culturais, você provavelmente deveria dizer a Domingos Bernardo: “obrigado”. Ele foi o autor do histórico parecer que reconheceu, pela primeira vez, a legitimidade e o direito do uso ritual da ayahuasca no Brasil, ainda na década de 1980, abrindo caminho para a expansão e legalidade do uso da bebida internacionalmente.

Domingos Bernardo segura um pedaço de cipó Banisteriopsis caapi, utilizado na preparação da ayahuasca. Coleção particular da família.

Domingos Bernardo Gialluisi da Silva Sá nasceu no Brasil, na cidade do Rio de Janeiro, em 20 de agosto de 1941, durante o Estado Novo de Getúlio Vargas e a Segunda Guerra Mundial. O segundo de sete irmãos e conhecido como “santinho” pelo seu temperamento gentil e bondoso, ainda criança foi estudar no seminário, para ser padre.

Após o falecimento de seu pai, mudou os rumos de seus estudos e, longe do seminário, conheceu Ana Maria Lessa, por quem se apaixonou e com quem viria a se casar no final da década de 1960.

Domingos se formou na Faculdade Nacional de Direito e construiu uma brilhante carreira como jurista, através da qual trabalhou para o governo e escreveu alguns livros importantes e pioneiros sobre a questão das drogas no Brasil.

Mente aberta em um tempo onde o Brasil vivia o fantasma da ditadura militar, sempre viu o tema das drogas como questão de saúde pública e não como problema criminal. E foi através de seu trabalho como jurista que Domingos Bernardo prestou um serviço inestimável a toda comunidade ayahuasqueira.

Papel fundamental na legalidade da ayahuasca no Brasil

Como sabemos, o uso da ayahuasca tem sido perseguido e sofrido diversas ameaças legais ao longo das décadas. Os Estados Unidos, por sinal, foram a primeira nação a colocar a DMT na ilegalidade, no ano de 1970, o que foi seguido por diversos outros países e culminou na assinatura de tratados transnacionais altamente proibitivos, como a convenção de Viena de 1971.

No Brasil, a situação não foi muito diferente, e a ayahuasca foi ameaçada de proibição legal em diversas ocasiões.

No ano de 1985, por exemplo, o cipó Banisteriopsis caapi, utilizado na preparação da ayahuasca, foi inserido na lista de substâncias proibidas pelo DIMED (Divisão de Medicamentos do Ministério da Saúde) por vários meses (Goulart 2004). Essa atitude provocou protestos da comunidade ayahuasqueira, que encaminhou uma petição contestando a medida (Labate e Feeney, 2012).

Então, em 1986 o CONFEN (Conselho Federal de Entorpecentes) designou uma comissão orientada a avaliar o uso religioso da bebida. É aí que entra o papel fundamental de Domingos Bernardo. E também do mistério e do imponderável, sempre presentes no universo da ayahuasca.

Isso porque Domingos Bernardo inicialmente não fazia parte da comissão, que era presidida por outro advogado. Foi só quando este pediu afastamento da função, que Bernardo foi convidado para presidi-la.

A partir daí, o tratamento governamental e legal dado à ayahuasca, até então pautado pela política de “guerra às drogas”, mudou. A comissão liderada por Bernardo adotou uma postura cheia de sensibilidade antropológica, realizando uma série de visitas às comunidades ayahuasqueiras.

Domingos visitou centros do Santo Daime, da União do Vegetal (UDV) e da Barquinha. Conversou longamente com seus representantes, chegando a fazer amizade com vários deles – como foi o caso com o Padrinho Sebastião, uma das maiores lideranças daimistas e um dos grandes responsáveis pela expansão do uso da ayahuasca aos centros urbanos do Brasil – e participou dos rituais a fim de observá-los e compreendê-los melhor, sem preconceitos.

Domingos Bernardo com Antônio Geraldo, líder da Barquinha. Coleção particular da família.

Dessa pesquisa nasceu o relatório final do Grupo de Trabalho do CONFEN, documento assinado por Domingos Bernardo que representa um verdadeiro divisor de águas na história da ayahuasca no Brasil. Esse trabalho garantiu, em 1987, a permissão do uso religioso da bebida sagrada, e abriu o caminho para as posteriores resoluções de âmbito nacional e internacional favoráveis à liberdade da ayahuasca.

Como compartilha conosco o juiz federal Jair Facundes, estudioso da ayahuasca no âmbito do direito, “todo ayahuasqueiro, em especial aqueles que se interessam pela história desta bebida, deveria ter uma cópia do parecer de Domingos”.

Semeador de amigos e afetos

Após essa participação decisiva, ele continuou envolvido nos processos decisórios sobre a legalidade da ayahuasca, sempre priorizando a proteção das minorias e a liberdade religiosa e de consciência frente às pressões sociais pela proibição.

Seguindo seus princípios humanistas, referendou sua posição no parecer final do CONFEN, de 1992. Durante a pesquisa para a confecção do parecer, ele inclusive viajou para a Amazônia, levando seus filhos e familiares para conhecer o Céu do Mapiá, sede mundial do Santo Daime, onde participou de vários rituais, como o feitio e o trabalho de cura.

Falando sobre o Santo Daime, Luiz Mendes do Nascimento, importante liderança histórica dessa religião brasileira, chamava Bernardo de “Nicodemos”, em alusão ao personagem bíblico que era membro do sinédrio mas seguia a Cristo, para deixar claro que, embora agente do Estado, Domingos era um defensor das comunidades ayahuasqueiras.

Domingos Bernardo macerando o cipó Jagube com uma marreta em um ritual de “feitio” do Santo Daime. Coleção particular da família.

E, precisamente por conta de sua postura carinhosa perante os grupos ayahuasqueiros, Domingos Bernardo foi criticado por conservadores e acossado pela mídia, que chegou a questionar sua isenção e suas motivações para sua atuação em prol da liberdade do uso da ayahuasca em território brasileiro.

E, precisamente por conta de sua postura carinhosa perante os grupos ayahuasqueiros, Domingos Bernardo foi criticado por conservadores e acossado pela mídia, que chegou a questionar sua isenção e suas motivações para sua atuação em prol da liberdade do uso da ayahuasca em território brasileiro (Folha de São Paulo, 1995).

Apesar disso, ele jamais retrocedeu, e atuou como consultor jurídico do CONAD no processo que culminou na Resolução 01 de 2010, documento mais atual que regulamenta o uso do uso da ayahuasca no país (CONAD, 2010).

O antropólogo Edward MacRae, um dos mais proeminentes pesquisadores brasileiros da ayahuasca, fez questão de compartilhar um pouco de sua vivência com Bernardo:

“No decorrer de minhas atividades, militando em prol de mudanças nas políticas públicas sobre drogas, tive a chance de encontrar várias vezes o renomado jurista Dr. Domingos Bernardo Gialuisi da Silva Sá. Nessas ocasiões, pude constatar uma similaridade entre nossos propósitos, embora ele fosse indubitavelmente um orador e um operador político muito mais refinado e eficaz do que eu.

Durante as reuniões que tivemos para discutir a elaboração dos dois últimos relatórios do Confen e, posteriormente, no Grupo de Trabalho instituído pelo CONAD, pude aquilatar a importância de sua atuação, rechaçando, qualquer tentativa de discriminação contra os direitos dos ayahuasqueiros em geral e fazendo questão de incluir os seguidores do Padrinho Sebastião entre os grupos legitimados pelas normas a serem estabelecidas. Dotado de elevada sensibilidade espiritual, tinha grande respeito pela ayahuasca desde quando , em 1985, visitou o Céu do Mapiá – Amazonas, onde foi tocado de maneira profunda e duradoura. A partir de então, dedicou muito de seu tempo e atenção à questão do reconhecimento oficial e da regulamentação do uso religioso da ayahuasca. Considero que sua atuação tenha sido a principal responsável pela liberdade da nossa bebida sacramental no Brasil”.

Bia Labate, Diretora Executiva do Chacruna Institute, também compartilha de sentimentos semelhantes:

Domingos foi fundamental na regulamentação legal da ayahuasca no Brasil, onde criamos um sistema de regras inédito baseado no diálogo entre representantes religiosos, pesquisadores e órgãos governamentais.

“Mais um dos grandes se foi. Domingos Bernardofoi não somente um jurista e acadêmico do Direito, mas também um humanista à moda antiga que nutria curiosidade por todas as coisas. Ele era generoso e gentil, um verdadeiro gentleman. Para mim foi uma honra publicar seus textos em minhas coletâneas sobre a ayahuasca. Domingos foi fundamental na regulamentação legal da ayahuasca no Brasil, onde criamos um sistema de regras inédito baseado no diálogo entre representantes religiosos, pesquisadores e órgãos governamentais. Este sistema regulatória para a ayahuasca no Brasil por sua vez influenciou a legislação sobre a bebida internacionalmente. Sempre seremos gratos pelo espírito desse homem visionário que reconheceu nossos direitos legítimos e fundamentais à espiritualidade”.

Além da admiração despertada por seu trabalho, todos que o conheceram são unânimes em salientar suas qualidades pessoais, e a doçura e sensibilidade que mantinha em suas relações sociais. Características que o tornavam capaz de transitar com igual desenvoltura e amizade pelos escritórios de advocacia, as salas do governo e os templos ayahuasqueiros.

Além de jurista, Domingos Bernardo era também um semeador de amigos, que colecionava em cada lugar que ia. Um de seus filhos, Leonardo Sá, é quem nos conta um pouco sobre seu lado mais íntimo e pessoal: “Meu pai gostava de vinho, amigos, família, reunir as pessoas…sentar junto no domingo, conversar sobre política. Era apaixonado por esculturas e fazia várias dela. Cultivava amigos e afetos. Amava livros e lia muito. E, nas horas vagas, adorava fumar um charuto e um cachimbinho também.”

Escultura de Domingos Bernardo. Coleção particular da família.

Um legado a ser lembrado e honrado

Domingos costumava dizer que “é caminhando que se encontra o caminho”. E, em sua luminosa caminhada em defesa da liberdade do uso da ayahuasca, ele escreveu:

“Afirmo, com serena convicção, que a procura de uma forma peculiar de percepção, empreendida pelos usuários da ayahuasca, em suas “sessões” ou “trabalhos”, não pode ser definida, irrefletidamente, como alucinação, ser tomado o termo na acepção de desvario ou insanidade mental. Houve sim, a constatação de realidade rigorosamente comum a todos eles: a consciência de expandir a virtualidades individuais e comunitárias, em busca do sagrado e do autoconhecimento” (Silva Sá, 2007).

Muito à frente de seu tempo e das abordagens jurídicas e farmacológicas da época, ele refletiu: “A chamada alucinação é, por muitas vezes, o pretexto para a excomunhão dos que encontraram “a porta” e ousam a passagem”.

Domingos Bernardo teve três filhos, 4 netas e uma bisneta. Completou sua jornada 3 dias antes de seu aniversário de 79 anos. Deixa para nós um exemplo de vida inspirador, que aliava a coragem à candura. A erudição à simplicidade. A luta à generosidade. A justiça à gentileza.

Domingos Bernardo teve três filhos, 4 netas e uma bisneta. Completou sua jornada 3 dias antes de seu aniversário de 79 anos. Deixa para nós um exemplo de vida inspirador, que aliava a coragem à candura. A erudição à simplicidade. A luta à generosidade. A justiça à gentileza.

E um legado imenso em prol do reconhecimento legal do uso da ayahuasca no Brasil e no mundo. Legado esse que deve ser honrado por todos e cada um que, como ele, defendem a liberdade, a diversidade e o direito das minorias.

Bernardo brincando com uma de suas netinhas. Coleção particular da família.

Como amante dos livros e da escrita que era, Domingos Bernardo gostava de citar seus autores favoritos em seus textos, além de aliar a escrita jurídica à reflexões filosóficas e depoimentos pessoais. À sua maneira, portanto, seguimos esse tributo com uma citação de um de seus textos, que ilustra de forma luminosa o espírito livre, vanguardista e desprovido de preconceitos desse verdadeiro herói brasileiro da ayahuasca:

“É preciso refletir e repensar a sociedade em que vivemos onde, com facilidade, classificamos de loucas ou alienadas as pessoas que, com ou sem ayahuasca, optam por formas de vida diferentes das nossas ou buscam processos de conhecimentos ou de realização pessoal diversos daqueles estabelecidos. Aliás, o que a sociedade rejeita é loucura não partilhada, a loucura “anormal”, isto é, aquela que foge à insanidade comum. Tantas vezes têm sido classificados de loucos comportamentos que, entretanto, nada mais são do que diferenças culturais não assimiladas e nem admitidas.

(…)O que, um dia, foi definido como loucura, absurdo, herético ou fantasioso e, por isso, até condenado à morte e queimado nas fogueiras, hoje integra, muitas vezes, o quadro das ciências ou doutas formulações doutrinárias. Quem percebe sempre estará apreendendo parte da realidade, num dos infinitos planos em que ela se desdobra. A história das percepções é uma história de choques, exaltação e condenação. Mais facilmente exaltamos aquilo que também nós somos capazes de perceber. E somos pródigos em condenar, como loucos, aqueles que percebem o que não atingimos” (Silva Sá, 2007).

Ao evitar o preconceito e a condenação prévia das culturas ayahuasqueiras em prol de uma abordagem dialógica e uma pesquisa de campo aprofundada, Domingos Bernardo desafiou o proibicionismo então vigente e abriu caminho para a liberdade da ayahuasca no Brasil, que perdura até hoje, apesar dos inúmeros desafios.

Que seu legado e seu exemplo de vida sirvam de inspiração para as novas gerações.

Domingos Bernardo tomando banho de igarapé na floresta amazônica. Coleção particular da família.

Obrigado, Domingos Bernardo!

Referências:

Conselho Nacional de Políticas sobre Drogas. (2010). Resolução n.01 de 2010.

Folha de São Paulo. (1995). Advogado diz que família não influi.

Goulart, Sandra. (2004). Contrastes e continuidades em uma tradição amazônica: as religiões da ayahuasca. Tese de Doutorado em Ciências Sociais, Unicamp.

Labate, Beatriz e Feeney, Kevin. (2012). Ayahuasca and the Process of Regulation in Brazil and Internationally: Implications and Challenges. International Journal of Drug Policy, nº 23, v. 2: 154-161.

Silva Sá, Domingos Bernardo Gialluisi. (2007). A consciência da expansão. Artigo originalmente publicado em: Discursos sediciosos. Crime, Direito e Sociedade. Rio de Janeiro, Instituto Carioca de Crimiologia. Ano 1, nº 2, 2º sem. 1996, pp. 145-174.

Art by Mariom Luna.

Este artigo foi publicado originalmente, em inglês, no portal do Chacruna Institute.

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