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Minha experiência como brasileiro em um retiro do Santo Daime nos EUA

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Pietro Benedito es sociólogo. Escribió su tesis doctoral en Sociología de la Religión sobre el tema de género y religión en Santo Daime.

Pietro Benedito é sociólogo. Escreveu sua tese de doutoramento da Sociologia da Religião sobre o tema gênero e religião no Santo Daime.

Em 2016, recebi a seguinte notícia: iria para os Estados Unidos no ano seguinte, fazer uma parte do meu doutorado na Universidade da Flórida (UF). Poder estudar no exterior foi um sonho que se realizava. Porém, devo admitir que os EUA nunca estiveram na minha lista preferencial de países para estudar, viver ou mesmo visitar. Como sociólogo brasileiro alinhado politicamente à esquerda, eu tinha cultivado uma desconfiada, e até mesmo certa irritação com a política e a cultura do país. A escolha pela UF se deu pelas oportunidades que se abriram para mim durante o período em que estive procurando um lugar para estudar.

Uma dessas oportunidades foi a possibilidade de fazer meu trabalho de campo nas igrejas do Santo Daime de lá, o que acabou sendo uma grande experiência para mim, tanto como pesquisador, como também como uma pessoa fardada (um devoto efetivo do Santo Daime). Como sociólogo, tive a oportunidade de ver as formas e características do Santo Daime nos Estados Unidos e compará-las com as que conhecia no Brasil. Já como membro do Santo Daime brasileiro, ir a uma igreja nos Estados Unidos e participar de seus rituais acabou sendo um passo essencial para conseguir lidar melhor com a minha “experiência estrangeira”; dei esse nome ao o que eu estava sentindo nos meus primeiros dias nos Estados Unidos. 

É claro que essa sensação foi marcada pela experiência de morar no lugar que eu tanto criticava, mas também foi criada por me sentir como uma criança, já que eu ainda não conhecia os códigos para ter as coisas que eu queria. Por exemplo, eu não entendia coisas básicas funcionavam naquela país, como fazer compras e arrumar a casa. Embora eu falasse inglês razoavelmente bem, eu também tive problemas para me conectar com as pessoas.

Em meio a esses desafios cotidianos, minhas atividades na UF já tinham começado, e meu trabalho de campo precisava começar logo, o que significava que eu precisava me adaptar rapidamente a esse ambiente exótico. Essa necessidade me levou à minha primeira viagem a uma igreja do Santo Daime, cerca de 20 dias após minha chegada. Embora esse tempo possa parecer tempo suficiente para a adaptação, essa não foi minha experiência, fazendo com que a minha participação durante a cerimônia funcionasse mais como um processo pessoal de cura profunda do que como uma experiência sociológica.

Um mês depois, fui para um retiro de quatro dias no norte do país, guiado por Jonathan Goldman e sua família, líderes da Igreja da Santa Luz da Rainha em Oregon (CHLQ). Entrei em contato com ele por saber que ele estava em contato com o líder da igreja brasileira à qual sou associado.

Essa ligação anterior foi a razão pela qual, quando Jonathan me convidou para participar do retiro, ele me explicou que as cerimônias eram diferentes das que eu estava acostumado. Ele, sua esposa Jane e a todas as pessoas responsáveis pelo espaço onde aconteceriam os rituais foram extremamente gentis comigo. O esforço deles em me ajudar a chegar no local da cerimônia foi fundamental para minha participação, pois eu ainda não tinha certeza da minha coragem e capacidade de suportar viagens tão distantes e longas.

Os rituais aconteciam em uma tenda, situada em uma aconchegante e charmosa fazenda, cercada por milharais e macieiras. Durante o retiro, nós fomos acomodados na fazenda, em espaços de camping ou em quartos. Ao longo desses dias, a intimidade entre mim e as pessoas que também estavam no retiro se fortaleceu, dissolvendo aos poucos meus medos e ansiedades de estar em uma terra diferente e distante, longe do casulo que havia criado na Flórida. Eu estava me conectando com eles. Muitas pontes possibilitaram essa conexão, e a mais importante foi a forma gentil e acolhedora de me receber.

No primeiro dia, ouvi uma senhora que estava conosco na fazenda dizer: “É como uma reunião de família”. Minha experiência religiosa no Brasil também consistiu na sensação de estar em uma família extensa criada pela união de todas as pessoas da igreja. Com eles, nós também partilhamos as refeições, os risos, a ternura e a ideia de uma missão espiritual. Durante o retiro, eles estavam me convidando para fazer parte de sua família  também.

Outras pontes também me ajudaram a não apenas interagir melhor com o grupo, mas também a entender e participar melhor dos rituais, que eram realizados em um formato diferente do que eu estava acostumado. O retiro foi baseado em três dias de “Trabalho de Autotransformação do Santo Daime ” e um dia de trabalho de hinário , o único que eu já estava acostumada a fazer.

O Trabalho de Autotransformação é um ritual de 20 anos, ainda em desenvolvimento por Jonathan e sua família, sendo profundamente marcado pela ligação com sua madrinha do Santo Daime Baixinha, seus queridos amigos Alex Polari e Sonia Palhares, importantes lideranças na expansão do Santo Daime, e também ao líder do ICEFLU, Alfredo Gregório de Melo.

Como Jonathan já havia me contato por e-mail, esses rituais ocorrem de uma forma bem diferente do que estou acostumado. Mas, seguindo suas orientações durante as cerimônias, a movimentação das pessoas ao meu redor, as orientações do próprio Daime e minha experiência como fardado, pude criar pontes de entendimento que me levaram a integrar os rituais. Ser daimista era em si uma ponte. Embora o formato fosse diferente, sua raiz era a mesma que eu já conhecia em meu coração.

É interessante notar que, assim como eu, a bebida sacramental que bebemos durante o retiro viajou das igrejas do Santo Daime no Brasil, para os Estados Unidos, junto com os hinários doutrinários de líderes e devotos brasileiros, cantados em minha língua nativa, o português. Foi como estar em casa, mas no estrangeiro.

Embora isso possa criar uma impressão de um processo de fluxo fácil, os rituais realmente se desenvolveram a partir de um primeiro dia muito ruim, que só foi superado por meio de um processo ativo de informar minhas experiências e cruzar todas as pontes que pude encontrar. Essas travessias também me ajudaram a dissolver julgamentos pessoais que desenvolvi a partir da minha experiência com uma forma diferente de fazer o trabalho do Daime, e pela minha dificuldade em me conectar com os Estados Unidos e seu povo.

Todo o esforço combinado culminou em um profundo sentimento de integração, e em um último dia de retiro extremamente feliz. Eu senti que não era o único a cruzar pontes: eles também estavam fazendo isso como devotos de uma religião estrangeira. Eu entendi que Jonathan e sua família estão criando uma ponte ao fazerem algo como um trabalho de tradução; não no sentido estrito de traduzir hinos e orações para o inglês, mas traduzindo toda a doutrina de um cenário brasileiro para um anglófono.

Um hinário bilíngue. Estados Unidos, 2017. Foto de Pietro Benedito.

No último dia, entrei na estrutura da igreja com a sensação de estar indo para minha própria igreja no estado de Minas Gerais; meu coração se encheu de calor. Eu senti como se tivesse uma conexão de coração com todos. Pela primeira vez em muito tempo, eu não estava mais sozinho. Encontrei, então, irmãos e irmãs nos Estados Unidos: um povo estrangeiro que foi tocado pelo Santo Daime e estava experimentando uma profunda transformação e cura. Cada vez que cantava o hino que dizia “Graças a Deus onde estou tem Daime” — do hinário da madrinha Maria Brilhante —, meus olhos ficavam nublados de emoção e felicidade pela expansão do Santo Daime, e também pela possibilidade de eu estar em um ritual mesmo estando tão longe de casa.

O movimento de expansão do Santo Daime e de outras tradições da ayahuasca pelos cinco continentes é uma realidade, embora enfrente desafios legais em muitos países, tornando muito importante o trabalho de grupos como o ICEERS, dedicados ao suporte legal para a expansão da ayahuasca. Tenho uma profunda crença nos intensos benefícios desse movimento de expansão. Eu mesmo sou um devoto da expansão regional do Santo Daime que foi desde a floresta amazônica até o sudeste brasileiro.

Para finalizar o post, conto um momento especial durante o retiro quando, ao se aproximar de um grupo de pessoas, uma mulher disse: “Então, você é o estrangeiro”, sendo respondida pelas palavras “Ele é um dos nossos agora ”, por um homem com um belo sorriso e um forte sotaque da Carolina do Norte. Então eu soube que não estava mais sozinho nos Estados Unidos e tive a certeza sobre a possibilidade real – e os benefícios – de uma ampla expansão global. A última ponte havia sido cruzada.

Imagem das bandeiras expostas na tenda. Estados Unidos, 2017. Foto de Pietro Benedito.

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