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O que o Santo Daime e a cultura “rave” têm em comum? A resposta pode balançar você.

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Ana Flecha é estudante de Doutorado no Departamento de Estudos Latinxs e Latinoamericanos da UC, Santa Cruz. Sua pesquisa se debruça sobre as implicações raciais e de gênero do bailado da religião do Santo Daime.

Ana Flecha es estudiante de doctorado en el Departamento de Estudios Latinoamericanos y Latinx de la UC, Santa Cruz. Su investigación se centra en las implicaciones raciales y de género de la danza de la religión del Santo Daime.

Embora o interesse por psicodélicos tenha crescido exponencialmente no século XXI, tal movimento tem sido amplamente baseado em noções de cura do indivíduo por meio de uma abordagem psicoterapêutica que tem se mostrado bastante limitada (Brennan, 2020). Muito pouca atenção tem sido direcionada aos aspectos dessas medicinas que envolvem a dança como prática psicodélica participativa e coletiva. Tanto o Santo Daime quanto a cultura rave surgiram de movimentos da hibridização de culturas em tempos de grandes mudanças e, embora possam não parecer ter muito em comum além do uso de substâncias psicoativas, o fato de que ambos também estão centrados na dança pode destacar práticas corporais eficazes que têm implicações não apenas para a cura individual, mas dentro da luta mais ampla por justiça social e ambiental.

A corporeidade de automovimento não é apenas central pelo seu potencial de cura individual, mas uma forma importante de resistência e postura contra-hegemônica que merece mais atenção enquanto enfrentamos múltiplas crises planetárias e proclamamos que os psicodélicos podem ser parte da solução.

O Santo Daime é uma religião ayahuasca brasileira do sul da Amazônia, fundada na década de 1930, na qual os participantes rezam, cantam hinos e dançam juntos em torno de um altar central. Raves – festas de dança com DJs nas quais psicodélicos são ingeridos, muitas vezes ocorrendo em lugares remotos e difíceis de encontrar – surgiram no final dos anos 1980 na Grã-Bretanha (Gauthier, 2004). Ambas as práticas conduzem a experiências profundas através das quais muitas pessoas passam a promover mudanças significativas em seu estilo de vida centradas nas próprias práticas. A corporeidade de automovimento não é apenas central pelo seu potencial de cura individual, mas uma forma importante de resistência e postura contra-hegemônica que merece mais atenção enquanto enfrentamos múltiplas crises planetárias e proclamamos que os psicodélicos podem ser parte da solução.

Ritual do Santo Daime no Céu do Mapiá.

O Corpo

Em seu livro sobre a rave como prática religiosa, Robyn Sylvan afirma que a ênfase de “estar no corpo” cultivada nas raves contrasta diretamente com a máxima cartesiana da civilização ocidental de “Penso, logo existo”, que gerou o princípio da mente como a fonte de verdadeira identidade de uma pessoa e a separação entre a mente e o corpo em toda a cultura (Sylvan, 2005). Sylvan cita relatos dos que frequentam as raves sobre suas experiências em que afirmam que dançar é a principal atividade que abre a porta para estados poderosos de cura. Eles refletem que dançar é como estar dentro de seu corpo e fora de sua cabeça, sentindo cada aspecto do seu corpo, sentindo que a consciência ocupa a matéria física e que não há separação. Graham St. John também descreve uma coletividade materializada e sentida na experiência de rave como uma massa unificada, influenciada por manipulações musicais e aprimorada por “drogas de dança” (St. John, 2004).

Muitos descrevem um fluxo ou uma sensação de ser movido pela música enquanto estão participando nas raves, que a música ou o ritmo simplesmente passa por eles (Sylvan, 2005). Embora isso também possa ser dito sobre experiências em festivais de música como Lollapalooza e Rock in Rio, Sylvan e outros afirmam que raves muitas vezes eventos não autorizados e, ademais, uma religiosidade legítima. Nesse sentido, St. John se refere à cultura rave como uma prática corpórea comparável aos rituais enteogênicos mundiais, e um fenômeno global heterogêneo, motivando novas espiritualidades e indicando a persistência da religiosidade entre os jovens contemporâneos (St. John, 2004). A palavra-chave aqui é “corpórea”, uma qualidade que o bailado do Santo Daime compartilha com a rave como prática religiosa.

O bailado do Santo Daime é um trabalho dançado em que os participantes tomam daime, também conhecido como ayahuasca, e dançam e cantam juntos em torno de um centro comum por muitas horas. Ao contrário das raves, onde a dança é improvisada e as pessoas podem se-mover no espaço à vontade, o bailado consiste principalmente em três danças: a marcha, a valsa e a mazurca, e cada participante tem um espaço designado por um fiscal dentro da formação do grupo. Do ponto de vista dos estudos religiosos, o uso de substâncias psicodélicas em práticas como a rave e o bailado do Santo Daime sugere um retorno a experiências místicas como as compartilhadas pelos ravers na etnografia de Sylvan. A qualidade incorporada de ambas as práticas religiosas de dança é crucial para a sobrevivência cultural e a luta para mais igualdade entre formas de produção e transmissão de conhecimento. Como aponta Diana Taylor, se a performance (incluindo a religiosa) não transmitisse conhecimento, apenas os letrados e poderosos poderiam reivindicar memória social e identidade (Taylor, 2003).

Automovimento

No bailado do Santo Daime, a dança é central (Assis, 2020). O fundador do Santo Daime, Raimundo Irineu Serra, conhecido como Mestre Irineu, integrou a dança nos “trabalhos” (como no “trabalho espiritual”)  já nos primeiros anos de prática. Tendo migrado para o estado do Acre ainda jovem após crescer no Maranhão, o jovem Irineu Serra teria se sentido atraído pelas práticas afro-brasileiras populares em seu estado, como Tambor de Crioula e Bumba Meu Boi, ambas envolvem dança (Macrae & Moreira, 2011). Muitos grupos indígenas do norte do Brasil que trabalham com plantas medicinais que contêm DMT também dançam e cantam juntos sob a força da medicina. Por mais que tenha se inspirado, quando Mestre Irineu dava aos companheiros do Acre instruções para dançar o bailado do Santo Daime, estava dando luz à prática tão importante de movermos juntos o corpo em uníssono.

Quando o assunto é a ingestão de medicinas psicodélicas, há mais ênfase no corpo por sua possível relação com a doença e o sofrimento do que pela sua potencial relação com o bem-estar e o prazer, e muitos têm medo de perder o controle do corpo por processos de purga, desequilíbrio, queda ou por acontecimentos negativos inesperados. Muito menos atenção é focada no corpo como uma fonte de alegria, agência e sabedoria por meio de práticas psicodélicas que envolvem o automovimento na forma de dança.

Movimento, ou o que Maxine Sheets-Johnstone chama de “automovimento”, é a origem de todo conhecimento e a fonte geradora de nosso senso de vitalidade (Sheets-Johnstone, 1999). O estado de repouso como prática de quietude tem seu valor, com certeza, mas parece haver uma ênfase exagerada na quietude quando se trata do uso clínico de psicodélicos no Ocidente, como se qualquer movimento do corpo pudesse interferir de forma potencialmente negativa nos efeitos da medicina. Quando o assunto é a ingestão de substâncias psicodélicas, há mais ênfase no corpo por sua possível relação com a doença e o sofrimento do que pela sua potencial relação com o bem-estar e o prazer, e muitos têm medo de perder o controle do corpo por processos de purga, desequilíbrio, queda ou por acontecimentos negativos inesperados. Muito menos atenção é focada no corpo como uma fonte de alegria, agência e sabedoria por meio de práticas psicodélicas que envolvem o automovimento na forma de dança.

Através de uma comparação improvável entre o bailado do Santo Daime e a rave, a centralidade universal do corpo em movimento entra em foco, permitindo subjetividades alternativas dos corpos moldados por raça e gênero, e que são empoderados quando liberados a se expressarem através do automovimento.

Os movimentos simples de balanço que compõem o bailado do Santo Daime lembram as forças da natureza, como o fluxo das ondas do mar e o balançar das árvores ao vento. Movimentando-se de forma síncrona e coletiva, os corpos individuais tornam-se parte de uma corrente maior e móvel na qual os participantes podem sentir seu lugar e seu pertencimento enquanto executam o bailado. Esta sensação de unidade também é enfatizada por muitos ravers que vivenciam uma união mística nos níveis físico, somático e sinestésico, alcançada por meio de improvisação e expressão individual libertada dentro da vibração coletiva criada em uma pista de dança (Sylvan, 2005). Através de uma comparação improvável entre o bailado do Santo Daime e a rave, a centralidade universal do corpo em movimento entra em foco, permitindo a manifestação de subjetividades alternativas dos corpos moldados por raça e gênero, e que são empoderados quando liberados a se expressarem através do automovimento.

MAYDAY True Rave, Alemanha, 2017.

Histórias

As raves nasceram no final dos anos 1980, quando londrinos de férias em Ibiza trouxeram a prática de volta com eles e começaram a organizar festas que combinavam a disponibilidade de MDMA – distribuído em grandes quantidades sob o nome de “ecstasy” – e house music, influenciada pela era disco que inaugurou um período de notoriedade pública de DJs. Os praticantes eram jovens festeiros privilegiados que procuravam uma fuga da falta de sentido da economia da era Thatcher / Reagan. Ao longo dos anos, explica Sylvan, as raves desenvolveram um senso de religiosidade e, à medida que se mudaram para os Estados Unidos e especialmente para a Califórnia, incorporaram imagens espirituais emprestadas das tradições nativas americanas, do hinduísmo e do budismo, e uma ampla gama de outras terapias e filosofias conforme as práticas se tornavam mais ritualizadas (Sylvan, 2005).

Embora as condições a partir das quais as práticas psicodélicas do Santo Daime e da rave emergiram sejam bastante diferentes, podendo mesmo ser localizadas em extremos opostos do espectro social, ambas surgiram da necessidade de alternativas para a subjetividade humilhante e solitária dos mercados capitalistas globais. Isso sugere que eles podem carregar sementes de mobilização social que podem germinar dentro do movimento psicodélico recém-surgido

O Santo Daime surgiu quando a jovem nação brasileira estava ocupada em negar sua história racista da escravidão, que só havia sido abolida oficialmente em 1888, quando uma nova constituição foi escrita. Mestre Irineu havia migrado do empobrecido Nordeste do Brasil para a Amazônia em busca de trabalho gerado pelo boom da borracha, assim como muitos de seus companheiros, que em sua maioria eram pobres, negros e sem escolaridade formal (Macrae & Moreira, 2011). Embora as condições a partir das quais as práticas psicodélicas do Santo Daime e da rave emergiram sejam bastante diferentes, podendo mesmo ser localizadas em extremos opostos do espectro social, ambas surgiram da necessidade de alternativas para a subjetividade humilhante e solitária dos mercados capitalistas globais. Isso sugere que eles podem carregar sementes de mobilização social que podem germinar dentro do movimento psicodélico recém-surgido, à medida que ele se torna consciente de suas próprias tendências neocoloniais, e os ventos que espalham essas sementes podem ser a prática do automovimento coletivo, ou dança.

Bailado do Santo Daime bailado na igreja Flor da Canoa. Foto de Fabio Flecha.

Justiça Contra o Epistemicídio

Como já sabemos, o conjunto e o ambiente em que as medicinas psicodélicas são ingeridos, conhecido no campo por “set and setting”, para usar a terminologia em inglês, têm muito a ver com os resultados alcançados por meio do envolvimento com essas substâncias (Hartogsohn, 2020). Cabe então perguntar, por que não?, por que é que a maioria das abordagens ocidentais para trabalhar com psicodélicos envolve tanta quietude física? Boaventura de Sousa Santos descreve o período de Renascimento na Europa como uma época em que a elite buscava o repouso e a permanência, refletidos na ideologia e na estética que passaram a definir o período (Santos, 2014). Não é por acaso que o interesse recente em psicodélicos está sendo apelidado de “Renascimento psicodélico”, à medida que milhões de dólares são investidos em pesquisas clínicas que podem levar a patentes farmacêuticas, assim como o investimento de capital em empreendimentos no exterior dominou o período renascentista dos séculos XVI e XVII. Enquanto vemos um fosso cada vez maior entre ricos e pobres, os psicodélicos se tornarão apenas mais uma mercadoria privatizada pelo 1% do andar de cima? Quanto menos nos movemos e quanto mais nos sentamos ou nos deitamos, mais provável é que isso aconteça.

Se os psicodélicos têm potencial para nos curar, iluminar e fortalecer, de que adianta essa luz e esse poder se ele permanecer estático, sem se mover?

Santos nos encoraja a lutar por justiça contra o “epistemicídio”: a aniquilação das formas de conhecimento por regimes capitalistas neoliberais que privilegiam a ciência cognitiva. Ele alega que iniciamos o século XX com as revoluções socialista e introspectiva de Marx e Freud, mas que estamos iniciando o século XXI com a revolução do corpo, com a corporeidade substituindo a classe e a psiquê como raiz de todas as opções (Santos, 2014). Eu acrescentaria a isso que a nova revolução, se realmente quisermos honrar o pluriverso e sua riqueza de conhecimento, será realizada por meio de corpos móveis, corpos que se movem juntos. Os psicodélicos podem servir como um catalisador para esse movimento, mas não podem substituir o próprio movimento. Se os psicodélicos têm potencial para nos curar, iluminar e fortalecer, de que adianta essa luz e esse poder se ele permanecer estático, sem se mover?

No bailado do Santo Daime e, mais recentemente, na cultura rave, temos exemplos importantes do papel que o movimento pode desempenhar não apenas na promoção da cura centrada no indivíduo, mas produção de espaços que aproximam e conectam as pessoas por meio do desejo compartilhado de um mundo melhor, mais colorido e mais harmonioso.

DJ Sarah Muñoz na Eco Aldeia Flecha da Mata. Foto de Fabio Flecha.

Bibliografia

Assis, G. L. de. (2020). Mestre Irineu: Um homem negro brasileiro que mudou a história da ayahuasca. Chacruna Latinoamérica. Disponível em: https://chacruna-la.org/mestre-irineu/

Brennan, B. (2020). The Revolution Will Not Be Psychologized: Psychedelics’ Potential for Systemic Change. Chacruna Institute. Disponível em: https://chacruna.net/the-revolution-will-not-be-psychologized-psychedelics-potential-for-systemic-change/

Gauthier, F. (2004). Rave and religion? A contemporary youth phenomenon as seen through the eyes of religious studies. Studies in Religion/Sciences Religieuses, 33(3–4), 397–413.

Hartogsohn, I. (2020). American Trip: Set, setting and the psychedelic experience in the twentieth century. MIT Press.

Macrae, E., & Moreira, P. (2011). Eu venho de longe: Mestre Irineu e seus companheiros. SciELO Books – EDUFBA. Disponível em: https://www.doabooks.org/doab?func=search&query=rid:22569

Santos, B. de S. (2014). Epistemologies of the South: Justice against epistemicide. Paradigm Publishers.

Sheets-Johnstone, M. (1999). The primacy of movement. John Benjamins Pub.

St. John, G. (Ed.). (2004). Rave Culture and Religion. Routledge.

Sylvan, R. (2005). Trance formation: The spiritual and religious dimensions of global rave culture. Routledge.

Taylor, D. (2003). The archive and the repertoire: Performing cultural memory in the Americas. Duke University Press.

Arte de Mariom Luna.

Artigo originalmente publicado no Chacruna Institute.

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