Cultura Português

Sobre a mercantilização da Ayahuasca: O que podemos fazer melhor?

No centro de muitas discussões sobre a globalização da ayahuasca está a mercantilização da bebida e os dilemas éticos que ela apresenta. Esta discussão torna-se ainda mais atual com a expansão internacional da ayahuasca e o aumento de praticantes motivados pelo ganho financeiro.

+ posts

Chacruna promueve la reciprocidad en la comunidad psicodélica y apoya la protección de las plantas sagradas y las tradiciones culturales. Promovemos la justicia psicodélica a través de la curación de conversaciones críticas y elevando las voces de mujeres, personas queer, pueblos indígenas, personas de color y el Sur Global en el campo de la ciencia psicodélica.
-----
Chacruna promove a reciprocidade na comunidade psicodélica e apoia a proteção de plantas sagradas e tradições culturais. Promovemos a justiça psicodélica por meio da cura de conversas críticas e da elevação das vozes de mulheres, pessoas queer, povos indígenas, pessoas de cor e do Sul Global no campo da ciência psicodélica.

14 Questões que a comunidade global da Ayahuasca deve considerar no caminho a seguir

À medida que a ayahuasca se torna cada vez mais popular em todo o mundo e é incorporada como sacramento ou medicina em diversas comunidades e contextos – desde comunidades indígenas a igrejas e círculos cerimoniais e terapêuticos – vemos surgirem conversas sobre assuntos difíceis, como a mercantilização, a apropriação cultural e a sustentabilidade da ayahuasca, das plantas relacionadas a ela e das tradições e práticas que envolvem o seu uso. No centro de muitas discussões sobre a globalização da ayahuasca está a mercantilização da bebida e os dilemas éticos que ela apresenta. Esta discussão torna-se ainda mais atual com a expansão internacional da ayahuasca e o aumento de praticantes motivados pelo ganho financeiro. Embora existam muitas pessoas bem intencionadas trabalhando neste contexto de globalização da ayahuasca, todos nós enfrentamos o desafio de garantir que nossas práticas sejam éticas, mutuamente benéficas e sustentáveis ​​para as comunidades locais e internacionais que servimos e nas quais atuamos. Então, o que podemos fazer melhor, vivendo, trabalhando e participando nesta comunidade globalizada?

A questão da mercantilização da ayahuasca é amplamente debatida na comunidade ayahuasqueira global, com muitas perspectivas diferentes a serem consideradas. Alguns povos e organizações indígenas manifestaram-se contra a mercantilização da ayahuasca ou mesmo a sua utilização por parte de pessoas que não pertencem a uma linhagem tradicional ou que são consideradas “de fora”, sugerindo que esta é uma forma de “apropriação cultural”. A prática de cobrar por cerimônias também tem sido criticada por razões religiosas, especialmente no Brasil, onde a legislação protege o uso ritual e religioso, mas não permite usos terapêuticos ou comerciais. No entanto, para alguns grupos indígenas, construir parcerias com pessoas não indígenas é uma forma de satisfazer as necessidades das suas comunidades, uma vez que os governos não os apoiam nem garantem os seus direitos (por exemplo, no caso dos festivais indígenas no Brasil). Na verdade, muitos amazônicos de diferentes países participam voluntariamente da “indústria da ayahuasca” e acolhem bem a participação de estrangeiros em seus rituais ou os treinam como aprendizes; podem desejar viajar para o estrangeiro, sentir que a expansão da ayahuasca é algo positivo e que a reciprocidade financeira é razoável e necessária. A venda da ayahuasca e a mercantilização das cerimônias ayahuasqueiras são frequentemente criticadas por pessoas do Norte Global, que às vezes têm pouca noção das necessidades ou pontos de vista dos povos amazônicos e de suas lutas por sobrevivência. A realidade é que muitos praticantes e participantes de cerimônias em diversos contextos culturais enfrentam o dilema de saber se é justificável ou moralmente aceitável treinar pessoas de fora para se tornarem curandeiros (por exemplo, linhagens tradicionais no Peru e na Colômbia) e cobrar dinheiro ou pedir doações para cerimônias com o que é reverenciado como um “sacramento” ou “medicina sagrada”, como no contexto das religiões ayahuasqueiras brasileiras e nos círculos internacionais de ayahuasca.

No entanto, também nos deparamos com o fato de que participamos de uma economia global e, muitas vezes, é através da arrecadação das cerimônias que muitos líderes cerimoniais e curandeiros xamânicos, seja em ambientes amazônicos ou ocidentais, são capazes de assegurar seus meios de subsistência no mundo capitalista moderno. Em contrapartida, é principalmente através do pagamento de cerimônias que os participantes ocidentais conseguem ter acesso à ayahuasca e fornecer uma compensação justa e adequada aos curandeiros e organizadores cerimoniais pelos seus serviços. Além disso, alguns profissionais argumentam que esta troca financeira pode encorajar as pessoas a valorizarem e dedicarem energia ao seu próprio processo de cura, com valores que são modestos em comparação com o preço cobrado por profissionais de saúde especializados nas sociedades ocidentais (por exemplo, psicoterapeutas e acupunturistas). Por outro lado, a situação atual na economia da indústria da ayahuasca levanta problemas de acessibilidade para pessoas com menos recursos financeiros e, embora o comércio da ayahuasca traga renda para a Amazônia, também pode criar desigualdades nas comunidades locais.

Saiba mais sobre a Iniciativa de Reciprocidade Indígena das Américas

As questões-chave ao considerar os problemas que a expansão e a mercantilização da ayahuasca trazem incluem a formação de líderes cerimoniais; as agendas dos líderes cerimoniais, organizadores e participantes; e os impactos específicos de nossas próprias ações e transparência em relação a elas. Devemos nos perguntar se estamos engajados em relações recíprocas e razoáveis ​​com os amazônicos de quem extraímos a ayahuasca e seus usos culturais.

Que perguntas, conversas e ações podem promover a globalização responsável, equitativa, ética e sustentável da ayahuasca? À medida que a nossa missão de promover conversas críticas sobre o uso de plantas medicinais psicodélicas continua crescendo, o Comitê da Comunidade Ayahuasqueira do Chacruna visa abordar questões-chave de relevância para a comunidade da ayahuasca. Reunimos uma lista de 14 questões a serem consideradas em relação ao uso da ayahuasca como parte de nossa responsabilidade coletiva para com as plantas, tradições e nossas comunidades, questões que abordam a participação ocidental nas cerimônias e tradições da ayahuasca. Quer você seja um iniciante ou um veterano experiente nessas tradições, quer esteja investindo em um centro de retiro caro na América do Sul ou Central, abrindo um novo círculo local na Bay Area (São Francisco, EUA), pensando em se mudar para o exterior para se tornar um facilitador em um centro de retiros, iniciando um novo capítulo transnacional de uma religião brasileira de ayahuasca no Norte Global, visitando um curandeiro local em sua casa, navegando na internet para escolher um local para sua experiência, participando de uma cerimônia com um grupo indígena brasileiro viajante (comitivas), ou seja um líder cerimonial itinerante tentando ganhar a vida, encorajamos você a explorar essas questões conosco e ajudar a garantir um futuro uso responsável da ayahuasca em todo o mundo.

Fizemos uma colaboração com praticantes e participantes experientes em diversos contextos e comunidades ayahuasqueiras para criar esta lista de perguntas. Este documento aborda o contexto de globalização da ayahuasca e não se refere às práticas locais que não têm envolvimento com grupos ocidentais. Nosso objetivo é abordar simultaneamente diversos contextos em que estão envolvidos participantes, organizadores, xamãs e centros nacionais e internacionais, portanto, algumas dessas perguntas podem não ser apropriadas para todos. Além disso, entendemos que algumas dessas questões são delicadas e levantam temáticas complexas que não necessariamente têm soluções simples, mas que requerem uma abordagem mais aprofundada que supera o alcance desse documento. Também estamos cientes de que o estatuto legal da ayahuasca em muitos países coloca desafios significativos. No entanto, como comunidade internacional em crescimento, encorajamos todos os profissionais e participantes a contemplar os pontos a seguir e esperamos que estas questões sirvam como pontapé para um diálogo mais amplo.

1. Quais são os costumes locais para compensar os fornecedores de ayahuasca pelo seu tempo e serviço e o que podemos aprender com isso?

Que tipos de relacionamento com o ayahuasquero/curandeiro são pré-requisitos para participar de uma cerimônia? Qualquer pessoa pode participar ou apenas pessoas convidadas? Os membros da comunidade local geralmente esperam trocar dinheiro, bens ou trabalho para participar em uma cerimônia de ayahuasca? A permissão para participar baseia-se apenas no fornecimento de alguma forma de pagamento ou envolve um relacionamento contínuo e outras formas de reciprocidade com o xamã, sua família e a comunidade local?

2. Quanto custa a cerimônia ou retiro, ou que doação se espera que o participante faça?

Este preço ou doação esperada parece ser uma troca justa pelos cuidados e instalações em comparação com outros prestadores locais que oferecem serviços semelhantes? Existem custos extras que surgem ao longo do caminho e que não foram incluídos no acordo original? As outras pessoas na comunidade acham que os preços cobrados ou as doações solicitadas são justos?

3. O bem-estar dos participantes tem precedência sobre as motivações financeiras?

Os participantes são devidamente analisados antes da cerimônia para avaliar a sua aptidão para a ayahuasca e se ela será genuinamente benéfica para eles? Os profissionais são dedicados ao bem-estar e à cura de seus participantes? Os participantes estão mais preocupados em participar de um ritual de cura ou simplesmente em “obter o máximo valor pelo seu dinheiro”?

4. Como são divulgadas ou promovidas as cerimônias/retiros/tours? A publicidade ou a descrição das cerimônias/retiros/tours parecem sensacionalistas?

Quais são os referentes éticos que os organizadores têm com relação à publicidade e difusão de cerimônias? São feitas afirmações exageradas sobre a ayahuasca como uma cura milagrosa? A linguagem é usada para apelar principalmente a um público consumidor (por exemplo, promoções, pacotes complementares, luxos, etc.)? Existem táticas de marketing usadas para promover ou vender produtos, cerimônias ou retiros adicionais enquanto as pessoas ainda estão sob a influência da medicina ou durante os dias imediatamente seguintes? Existe uma tentativa de promover ou impulsionar a necessidade do uso da ayahuasca? Existe proselitismo religioso?

5. Estão disponíveis descontos para grupos desfavorecidos ou alguma forma de tornar a experiência mais acessível para pessoas com recursos financeiros limitados?

Se um centro ou círculo se considera uma congregação espiritual ou religiosa seguindo as religiões ayahuasqueiras brasileiras, eles estão mantendo os padrões tradicionais de, tanto quanto possível, não ter o dinheiro como uma barreira para fazer parte da prática? Existem oportunidades para doações espontâneas e não para taxas fixas? Pedem aos membros regulares que paguem um dízimo de seu salário como forma de apoiar a comunidade em geral, incluindo aqueles com menos recursos? Com relação a outros contextos cerimoniais: Os habitantes locais da região podem participar nas cerimônias gratuitamente ou através de donativos? Os cargos de trabalho ou as cerimônias e retiros com desconto estão disponíveis para aqueles que não podem pagar o preço integral?

6. As pessoas locais e/ou nativas estão empregadas e ocupam posições de poder?

Se estiver em um contexto de centro ou círculo de retiro, os habitantes locais ou indígenas são bem-vindos para se envolverem de formas que ressoem com os seus próprios estilos de vida? Eles são simplesmente “funcionários” ou ocupam espaços de tomada de decisões? Os curandeiros locais ou indígenas e as suas comunidades são respeitados ou aparecem como uma espécie de emblema (por exemplo, sem anunciar seus nomes e comunidades étnicas)? Quão bem integrados estão os diferentes grupos culturais dentro do centro ou comunidade?

7. As pessoas locais ou indígenas são pagas de forma justa pelos seus serviços e conhecimentos?

Os preços elevados, geralmente cobrados em dólares dos visitantes, são distribuídos de forma a respeitar e ajudar na subsistência local? As relações financeiras ajudam a sustentar as comunidades locais? As condições de trabalho são justas? Os funcionários conseguem ver suas famílias conforme desejam e têm uma proporção adequada de descanso do trabalho? Nos casos de xamãs ou grupos indígenas viajantes (comitivas), turismo étnico/xamânico em uma aldeia indígena ou participação em festivais indígenas brasileiros: As pessoas da comunidade acreditam que estão se beneficiando de forma justa das viagens dos xamãs e comitivas ou dos eventos comunitários, como festivais e retiros na aldeia? Os membros da comunidade têm a oportunidade de viajar para o estrangeiro ou apenas alguns?

8. Como foram treinados o líder cerimonial, os facilitadores e os assistentes?

Como, por quanto tempo e por quem foram treinados? De acordo com pessoas experientes na comunidade, os líderes cerimoniais têm experiência suficiente para conduzir cerimônias e os assistentes cerimoniais têm experiência suficiente para apoiar a eles e aos participantes? O xamã ou líder cerimonial tem relação com alguma linhagem identificável? Têm uma comunidade que inclui autoridades espirituais e políticas que os reconhecem e perante a qual prestam contas?

9. De onde vem a ayahuasca e as plantas relacionadas com a ayahuasca?

O líder cerimonial conhece a origem das plantas ou a pessoa responsável pela preparação da bebida? Eles são capazes de informar quais plantas e aditivos foram usados ​​para produzi-la? A ayahuasca vem da Amazônia ou de outros lugares de clima tropical? A pessoa que preparou a bebida é reconhecida como suficientemente qualificada para assumir esta responsabilidade? A sustentabilidade da ayahuasca é levada em consideração quando da escolha de onde obter as plantas? Está sendo feita alguma contribuição para o plantio e manejo de Banisteriopsis caapi e Psychotria viridis e outras plantas envolvidas na mistura?

10. As preocupações e esforços ambientais e comunitários são apoiados e respeitados?

Qual é a relação entre o centro, círculo ou líder cerimonial e a sua comunidade local e meio ambiente? O ambiente local é cuidado (por exemplo, práticas de reciclagem, manutenção de jardins)? O centro, círculo ou líder cerimonial faz alguma coisa para retribuir à sua comunidade local? O centro, círculo ou líder cerimonial tem um projeto ambiental ou comunitário? Em caso afirmativo, este projeto é eficaz para os beneficiários?

11. Qual é a base dos programas de voluntariado e dos acordos de “intercâmbio de trabalho” para permitir o acesso à ayahuasca?

Essas trocas são mutuamente benéficas? Os voluntários estão aprendendo alguma coisa e se beneficiando de suas experiências ou apenas fornecendo mão de obra gratuita? Os voluntários recebem tempo e apoio para processar suas experiências com a ayahuasca?

12. Existem serviços de apoio e integração disponíveis após cerimônias ou retiros?

Qual é o nível de responsabilidade que os líderes e organizadores cerimoniais têm para com os seus participantes? Eles oferecem uma maneira, com pouco ou nenhum custo, para as pessoas receberem apoio espiritual e emocional após o término das cerimônias (fora a necessidade de intervenção terapêutica ou de saúde séria)?

13. Existem normas legais sendo seguidas?

O centro, círculo ou líder cerimonial está operando como uma empresa? A ayahuasca é legal no país onde as cerimônias são realizadas? As normas legais com relação à higiene, segurança, saúde, alimentação, etc. estão sendo seguidas? O centro, círculo ou líder cerimonial está pagando os impostos exigidos de acordo com as leis do país em que está legalmente estabelecido ou operando?

14. A ayahuasca está sendo usada como meio de solicitar recursos financeiros de forma indevida?

Existe uma grande ênfase em fazer pagamentos adicionais ou doações ao centro, círculo ou líder cerimonial? Os participantes são convidados a considerar investir ou entrar em uma parceria comercial com o líder cerimonial ou organização sem primeiro estabelecer um relacionamento apropriado ou ter a experiência necessária com a ayahuasca?

Este artigo foi publicado originalmente em inglês pelo Chacruna Institute.

Tradução de Paula Bizzi Junqueira.
Capa de Pedro Mulinga

Únete a nuestro Newsletter / Inscreva-se na nossa Newsletter

Te podría interesar

Loading...