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Jean Langdon: meio século de pesquisa sobre xamanismo e ayahuasca

Neste artigo, Isabel Rose apresenta a proposta de Esther Jean Langdon de abordar o xamanismo como um sistema cosmológico.

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Isabel Santana de Rose es una antropóloga brasileña e investigadora en el campo de las religiones de la ayahuasca desde hace más de veinte años. Su disertación de P.hD. se centra en el surgimiento de redes chamánicas contemporáneas en Brasil.

Jean Langdon: meio século de pesquisa sobre xamanismo e ayahuasca1

1 Uma versão estendida desse texto foi publicada em português na coletânea Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon (Rose, 2023).



Xamanismo como sistema cosmológico

Num período em que os estudos sobre xamanismo eram majoritariamente dominados por antropólogos homens, Jean Langdon se destacou como pioneira no reviva das pesquisas antropológica sobre o tema. Na década de 1970 ela fez parte de uma geração de antropólogos e antropólogas que realizou trabalhos de campo nas Terras Baixas da América do Sul e que contribuiu para um aumento significativo do nosso conhecimento sobre os povos indígenas dessa região. 

Até a primeira metade do século XX, a maioria das análises antropológicas sobre xamanismo tentava enquadrar esse fenômeno em categorias ocidentais pré-estabelecidas, resultando em uma quantidade relativamente pequena de estudos e em discussões fragmentadas que não contemplavam a diversidade dos sistemas xamânicos nativos. O renascimento das investigações sobre xamanismo teve início na década de 1960 e foi estimulado por uma série de fatores que aconteceram tanto dentro quanto fora da academia. Por volta da década de 1980, as publicações científicas e os seminários dedicados à discussão deste tema começaram a se multiplicar. Ao mesmo tempo, diversos grupos indígenas de toda a América do Sul começaram a revitalizar seus sistemas xamânicos. 

Nesse contexto, autores como Langdon e Jean-Pierre Chaumeil (1983) questionaram a inclusão do xamanismo nos debates antropológicos clássicos sobre magia, religião e ciência. Segundo esses autores, o xamanismo é uma instituição central na organização da vida social e cosmológica dos povos indígenas da América do Sul. Eles sugeriram que o xamanismo deveria ser visto como um sistema cosmológico, associado simultaneamente a várias dimensões: política, saúde, estética, guerra, predação, organização social, e assim por diante. Langdon e Chaumeil também propuseram a ideia de xamanismos em movimento, onde destacam as constantes transformações e re-invenções dos sistemas xamânicos, e desafiam as análises antropológicas clássicas que consideravam o xamanismo como um fenômeno estático.

Jean Langdon nasceu nos Estados Unidos e passou boa parte da década de 1970 realizando pesquisa de campo entre os Siona na Colômbia. Mudou-se para o Brasil nos anos 1980, tendo contribuído principalmente com os estudos nas áreas de de antropologia da saúde, políticas de saúde indígena, xamanismo, literatura oral e performance. Ela descreve sua perspectiva como parte de uma “antropologia da periferia”, por seu trabalho ter emergido em diálogo com de perspectiva antropológica situada no Sul Global, e por ser influenciado por seu papel e lugar como mulher cientista (Langdon, 2013b: 2017). Na década de 1990, Langdon organizou o livro Xamanismo no Brasil: novas perspectivas,a primeira coletânea sobre o tema publicada no Brasil (Langdon, 1996). O livro enfatiza a relevância do xamanismo como um assunto relevante para a antropologia, e chama a atenção para o surgimento de pesquisas brasileiras sobre o tema. Também destaca a importância de produzir modelos teóricos mais adequados para entender o xamanismo como sistema, especialmente no que diz respeito ao seu caráter dinâmico e à sua presença no mundo contemporâneo. 


Em seus trabalhos, Langdon propõe abordar o xamanismo como um sistema cosmológico.


Em seus trabalhos, Langdon propõe abordar o xamanismo como um sistema cosmológico. Ela destaca as conexões entre os sistemas xamânicos e a necessidade humana de expressão (por meio de rituais, mitos, símbolos e narrativas), juntamente com a busca de atribuir significado à experiência humana e as questões estéticas associadas a essa necessidade expressiva. Langdon enfatiza que, embora existam elementos comuns entre os diversos xamanismos ameríndios, esses sistemas são heterogêneos, estão em constante mudança e devem ser compreendidos dentro de seus contextos culturais específicos. Outra característica importante das obras de Langdon são as análises das narrativas Siona a respeito de questões como batalhas xamânicas, voôs xamânicos em sonhos, visões induzidas pelo consumo de yajé (ayahuasca) e enfermidades e mortes causadas por feitiçaria. Langdon argumentou que na década de 1970, período no qual os Siona não conseguiam realizar seus rituais coletivos com yajé, as narrativas tinham um papel análogo ao do rito, contribuindo para produzir conhecimento e para reproduzir as experiências com os domínios invisíveis da realidade. Portanto, a performance verbal das narrativas xamânicas expressava uma cosmologia e práticas que refletiam uma perspectiva xamânica do mundo, bem como a identidade étnica Siona (Langdon, 2020, p. 23).

Essas reflexões sobre a necessidade humana de expressão e as questões estéticas também são centrais no livro La negociación de lo oculto: chamanismo, medicina y família entre los Siona del bajo Putumayo, publicado em 2014. Esse trabalho constitui uma versão atualizada da tese de doutorado de Langdon, defendida na Universidade de Louisiana em 1974, e tem como base quatro anos de pesquisa de campo conduzida na Reserva Indígena de Buena Vista, localizada perto da cidade de Puerto Assis, na região do Putumayo na Colômbia. O livro também inclui o material de mais quatro visitas ao Putumayo realizadas entre 1980 e 1992. Em todas essas visitas, Langdon se dedicou a registrar as narrativas Siona, tendo coletado mais de 100 relatos na língua nativa sobre questões relacionadas ao xamanismo. Sua etnografia está centrada no sistema médico Siona, estabelecendo conexões entre este sistema, o sistema xamânico e o consumo de yajé. Langdon destaca especialmente o que chama de práxis, ou seja, a interação entre os significados simbólicos e a ação concreta na vida cotidiana, ressaltando a emergência dinâmica da cultura e as constantes transformações dos sistemas xamânicos.


Arte de Trey Brasher.


Redes Xamânicas Contemporâneas

 As reflexões sobre xamanismo permeiam o imaginário ocidental há mais de 500 anos. Os primeiros registros dessas práticas foram feitos por viajantes e missionários nos séculos XVI e XVII. No final do século XIX, antropólogos e antropólogas também começaram a estudar esse tema. Nessa época, o xamanismo era percebido como sendo restrito a grupos específicos que compartilhavam uma cultura, história e região geográfica comuns. A partir da década de 1950 outros atores sociais passaram a discutir este tópico, inclusive pessoas ocidentais em busca de experiências espirituais alternativas. Mais recentemente, os próprios povos indígenas também se tornaram atores centrais na multiplicação de vozes, perspectivas, performances rituais e práticas xamânicas conduzidas em cenários muito diversos (Langdon, 2013a, p. 20). Embora o conceito de “xamã” tenha sido empregado inicialmente em contextos acadêmicos, atualmente ele é amplamente utilizado por diferentes atores sociais contemporâneos. Desse modo, em muitos casos, os termos “xamã” e “xamanismo” substituíram as palavras nativas que tradicionalmente se referem às diversas práticas e aos múltiplos especialistas e praticantes rituais indígenas. 

No Brasil, especialmente nos últimos 20 anos, houve uma multiplicação das redes xamânicas contemporâneas conectando grupos e representantes indígenas a diversos atores não indígenas, incluindo grupos espirituais, ONGs, antropólogos(as), e muitos outros. A ayahuasca desempenha um papel central nessas redes, constituindo a substância psicoativa mais popular entre os grupos espirituais ocidentais e sendo frequentemente associada aos xamanismos indígenas (Langdon, 2013). As redes xamânicas contemporâneas são caracterizadas pela circulação de um conjunto mais ou menos padronizado de performances rituais, expressões estéticas e objetos associados a imagens genéricas do xamanismo e da identidade indígena. Somado a isto, nesses cenários é comum encontrar uma série de imagens e conceitos, como o “indígena ecológico” ou o “nativo espiritual”, “conhecimento ancestral” e “medicina tradicional” (ver Langdon, 2013a; Langdon e Rose, 2012 e 2014). É importante ressaltar que esses conceitos dão margem a muitas traduções ambíguas e equívocos, sendo interpretados e utilizados de forma heterogênea pelos diversos atores sociais que fazem parte desses circuitos. Mais ainda, as lideranças indígenas que participam dessas redes muitas vezes utilizam essas imagens e representações de forma criativa e reversa, a fim de atender suas próprias reivindicações e necessidades (Rose e Okenda, 2021).

O crescimento recente das redes xamânicas contemporâneas se reflete no aumento de rituais indígenas direcionados a um público de classe média urbana, realizados em cidades de todo o mundo. No Brasil, os festivais culturais indígenas também estão se multiplicando. Estes são realizados em aldeias indígenas, principalmente na região amazônica, mas também em outras partes do país, e contam com participantes tanto indígenas quanto não indígenas. O aumento desses eventos reflete a expansão da agência social e política indígena nessas redes. Neste cenário, os grupos e representantes indígenas estão cada vez mais presentes e ganham visibilidade nas discussões públicas brasileiras sobre a ayahuasca, e diversas outras questões que impactam suas comunidades.

Conforme sugerido por Langdon (2013a), a expansão dos xamanismos para contextos não indígenas requer uma reavaliação dos modelos analíticos clássicos do xamanismo. Ela indicou que a emergência das redes xamânicas contemporâneas contribuiu para uma renovação das práticas xamânicas Siona, que aparentemente estavam em declínio na década de 1970. Langdon argumentou que seu trabalho de campo no Putumayo na década de 1970 poderia ser descrito como uma situação de “xamanismo sem xamãs”. Ela afirmou que, quando deixou a aldeia de Buenavista em 1974, havia previsto o desaparecimento do sistema xamânico Siona. Influenciada pelas teorias antropológicas da época, nunca imaginaria a revitalização desse sistema xamânico, a transformação da ayahuasca em uma substância popular e mundialmente conhecida, ou mesmo o aumento do interesse da população urbana de classe média por essa bebida. Langdon destaca  que suas próprias concepções sobre as culturas indígenas no período a impediram de compreender a profundidade da identidade indígena e a força do xamanismo Siona (Langdon, 2020, p. 31).

Entretanto, já na década de 1980, alguns Siona começaram a retomar seus rituais com yajé, realizando sessões dirigidas para seus vizinhos caboclos e visitantes não indígenas. Também passaram a participar das redes regionais de curandeirismo que fazem parte do sistema médico popular colombiano (Langdon, 2013a). Além disso, no final desta mesma década, alguns Siona começaram a se tornar extremamente visíveis e valorizados nas redes xamânicas contemporâneas transnacionais. Nesses cenários, os novos taitas realizam tomas de yajé para um público composto principalmente por antropólogos(as), jornalistas e outros(as) profissionais urbanos (Langdon, 2016).

A maior parte das pesquisas sobre esses xamanismos contemporâneos indica que esses rituais são direcionados especialmente para questões individuais, psicológicas e terapêuticas. Nesse sentido,  essas práticas são muito diferentes dos rituais indígenas, que tendem a priorizar aspectos públicos e coletivos. Além disso, essas performances rituais tendem a refletir um “xamanismo muito mais amoroso” (Langdon, 2020, p. 41), exibindo expressões estéticas que representam um xamã amazônico genérico, e não os diversos xamanismos indígenas particulares. Somado a isto, nessas performances e discursos voltados para um público majoritariamente urbano e não indígena, a ambiguidade e os aspectos ligados ao canibalismo, feitiçaria e predação costumam estar ausentes.

Existem vários relatos etnográficos recentes no Brasil sobre diálogos e alianças entre grupos indígenas e grupos espirituais não indígenas (ver, entre outros, Rose, 2010). As investigações atuais sobre o tema tendem a destacar a criatividade e o dinamismo desses movimentos contemporâneos. Os xamanismos hoje se caracterizam por alianças, diálogos, controvérsias e equívocos entre diversos grupos e atores indígenas e não indígenas (ver, entre outros, Platero e Rose, 2022). Também é importante ressaltar a crescente liderança indígena nessas redes, bem como a intensificação da agência política indígena em contextos mais amplos. Segundo Jean-Pierre Chaumeil, em muitos casos essas reações indígenas e as novas versões do xamanismo resultantes desses processos são surpreendentes, e mesmo contrárias às imagens e expectativas antropológicas.


O conceito de redes xamânicas contemporâneas (Langdon, 2013a) visa superar essas dicotomias, enfatizando as características extremamente dinâmicas e criativas desses movimentos atuais. As redes xamânicas contemporâneas são fenômenos caracterizados pela constante construção e multiplicação de práticas rituais e sistemas simbólicos.


O conceito de redes xamânicas contemporâneas (Langdon, 2013a) visa superar essas dicotomias, enfatizando as características extremamente dinâmicas e criativas desses movimentos atuais. As redes xamânicas contemporâneas são fenômenos caracterizados pela constante construção e multiplicação de práticas rituais e sistemas simbólicos. Essas práticas atravessam fronteiras geográficas, simbólicas, políticas e conceituais, nos convidando a questionar dicotomias ocidentais rígidas como “floresta/cidade”, “indígena/não indígena” e “tradicional/moderno”.

Langdon (2014) aponta que os estudos antropológicos sobre xamanismo refletem a história da própria antropologia. Desse modo, as preocupações, conceitos e questões antropológicas de hoje são completamente diferentes daqueles dos anos 1970. Os trabalhos de Jean Langdon sobre xamanismo ao longo de mais de meio século refletem essas transformações e também traçam as mudanças que aconteceram nos xamanismos indígenas e em suas conexões com o chamado “mundo não indígena”. No entanto, apesar dessas mudanças, alguns tópicos permanecem constantes em seus escritos sobre xamanismo e ayahuasca, como a ênfase nas associações entre os sistemas xamânicos e a necessidade humana de expressão; a análise das questões estéticas associadas a esta necessidade expressiva; o foco na criatividade e na reinvenção constantes; o caráter dinâmico e a heterogeneidade que caracterizam os xamanismos ameríndios; e o conceito de práxis, que chama a atenção para a relação entre os significados simbólicos e a ação concreta na vida cotidiana.




Referências

Chaumeil, J. P. (1983). Voir, savoir, pouvoir: le chamanisme chez les Yagua du nord-est péruvien. [Visão, conhecimento, poder: xamanismo entre os Yagua do nordeste do Peru] (Paris: École des Hautes Études en Sciences Sociales).

Langdon, E. Jean (org.) (1996). Xamanismo no Brasil: novas perspectivas. (Florianópolis: Editora da UFSC).

Langdon, E. Jean (2013a). New perspectives of shamanism in Brazil: shamanisms and neo-shamanisms as dialogical categories [Novas perspectivas sobre xamanismo no Brasil: xamanismos e neo-xamanismos como categorias dialógicas] . Civilizations: Revue internationale d’anthropologie et de sciences humaines, 61(2): 19-35.

Langdon, E. Jean (2013b). Medio siglo de investigaciones de campo: reflexión autobiográfica sobre las contribuciones de la perspectiva de género [Meio século de pesquisa de campo: reflexões autobiográficas sobre as contribuições da perspectiva de gênero]. Maguaré, 27(1): 215-240.

Langdon, E. Jean (2014). La negociaçión de lo oculto: chamanismo, medicina y família entre los Siona del Bajo Putumayo [A negociação do oculto: xamanismo, medicina e família entre os Siona do Baixo Putumayo]. (Popayán: Editorial Universidad del Cauca).

Langdon, E. Jean (2016). The revitalization of yajé Shamanism among the Siona: strategies of survival in historical context [A revitalização do xamanismo com yajé entre os Siona: estratégias de sobrevivência em contextos históricos]. Anthropology of Consciousness, 27(2): 180-203.

Langdon, E. Jean (2017). Cosmopolitics among the Siona: shamanism, medicine and family on the Putumayo River [Cosmopolítica entre os Siona: xamanismo, medicina e parentesco no Rio Putumayo]. (Popayán: Editorial Universidad del Cauca).

Langdon, E. J (2020). Configuraciones del chamanismo siona: modos de performance nos séculos XX e XXI [Configurações do xamanismo Siona: modos de performance nos séculos XX e XXI]. Maguaré , 34(1), 17-47.

Langdon, E. Jean e Isabel S. Rose (2012). Contemporary Guarani shamanisms: ‘traditional medicine’and discourses of native identity in Brazil [Xamanismos Guarani contemporâneos: “medicina tradicional” e discursos sobre identidade indígena no Brasil]. Health, Culture and Society, 3(1): 29-48.

Langdon, E. Jean e Isabel S. Rose (2014). Medicine Alliance: contemporary shamanic networks in Brazil [Aliança das Medicinas: redes xamânicas contemporâneas no Brasil]. In Labate, B. C. e Cavnar, C. (orgs.), Ayahuasca shamanism in the Amazon and beyond (pp. 81-104). Oxford/Nova York: Oxford University Press.

Platero, Lígia D. e Isabel S. Rose (2022). Forest medicines, kinship alliances and equivocations in the contemporary dialogues between Santo Daime and the Yawanawá [Medicinas da floresta, parentesco e equívocos nos diálogos contemporâneos entre o Santo Daime e os Yawanawá]. Anthropology of Consciousness, 33(2): 279-306.

Rose, Isabel S. (2023). Meio século de pesquisa sobre xamanismo. In Maluf, S. W., Diehl E. E. E Nieto Moreno J. V (orgs.) Uma antropologia da práxis: homenagem a Jean Langdon (pp: 25-44). Florianópolis: Editora da UFSC/Instituto Brasil Plural.

Rose, Isabel S. e Geraldo Karaí Okenda (2021). Xamanismos guarani e tradução no Encontro de Saberes. Revista Ilha, 23(3): 21-40.

Rose, Isabel S. (2010). Tata endy rekoe – Fogo Sagrado: encontros entre os Guarani, a ayahuasca e o Caminho Vermelho. Tese de doutorado em Antropologia, Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina.

Texto tradicionalmente publicado pelo Instituto Chacruna.

Ilustração da capa por Luana Lourenço.

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