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Sedução sexual entre xamãs e participantes no circuito ayahuasqueiro

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Daniela Peluso, Ph.D., es antropóloga cultural e investigadora honoraria en la Universidad de Kent. Se especializa en antropología de las tierras bajas de América del Sur.

Ao focar em gênero e sexo, espero destacar o quanto podem ser flexíveis, ainda que frágeis, as interações sociais no contexto de saúde e cura através de cerimônias de ayahuascas ao redor do mundo. O locus central desse artigo é Puerto Maldonado, no Peru, uma capital regional amazônica, e seu entorno, lugar onde venho conduzido pesquisas de campo ao longo das últimas duas décadas, particularmente entre Ese Eja.

Sedução Xamã-Participante

Juntamente com a proliferação do xamanismo e do turismo ayahuasqueiro, tanto localmente quanto globalmente, os contextos de consumo de ayahuasca colocam no mesmo ambiente xamãs e participantes que têm diferentes imaginários uns sobre os outros e diferentes razões para participarem de um ritual socialmente compartilhado. Em meio ao grande aumento desses encontros, há uma alarmante taxa de intercorrências de facilitadores ayahuasqueiros (e/ou seus assistentes) que fazem investidas sexuais em direção à participantes mulheres durante ou após cerimônias de ayahuasca.

Já existem hoje vários registros de casos de xamãs que procuram obter relações sexuais com participantes. Registros que mostram que, para esses homens específicos, sexo com participantes é algo premeditado e parte de sua rotina.

Já existem hoje vários registros de casos de xamãs que procuram obter relações sexuais com participantes. Registros que mostram que, para esses homens específicos, sexo com participantes é algo premeditado e parte de sua rotina. Indivíduos que entrevistei e relatos em blogs descrevem como alguns xamâs parecem “preparar o terreno” para uma investida sexual e direcionar suas atenções às pessoas com isso em mente. Um homem antropólogo me descreveu como, enquanto ele viajava com um jovem indígena de uma comunidade com a qual trabalhava, esse se comportava fingindo que era um xamã explicitamente como uma tática para seduzir mulheres, tentando imitar o “sucesso” que o xamã de sua própria vila tinha ao seduzir turistas mulheres que participavam de cerimônias.

Alguns ayahuasqueiros que transitam no circuito turístico usam substâncias específicas para ajudá-los na tarefa de seduzir participantes. Um xamã me disse que ele havia tido lições com xamãs Shipibo que conheciam algumas ervas que poderiam ‘borrar’ as fronteiras sexuais das mulheres. A farmacopeia amazônica inclui feitiços e encantamentos usados explicitamente para sedução. Eles são feitos com a intenção de durar somente por um curto período, a não ser que seja renovado, de modo a criar um lapso temporal do pensamento racional. Além disso, algumas pessoas descrevem que a própria ayahuasca, por conta das sensações sensuais que pode provocar, também é utilizada por alguns como ferramenta para sedução.

Normalmente essas investidas sexuais de xamãs sobre participantes acontece nos momentos em que as cerimônias estão se encerrando, embora algumas vezes possam acontecer enquanto a participante ainda está sob os efeitos agudos da ayahuasca.

Normalmente essas investidas sexuais de xamãs sobre participantes acontece nos momentos em que as cerimônias estão se encerrando, embora algumas vezes possam acontecer enquanto a participante ainda está sob os efeitos agudos da ayahuasca. Uma mulher jovem explicou: “não é tanto sobre sedução. É sobre assédio sexual. Eu fui apalpada por um xamã!” Ela foi com um amigo homem e um colega, que vivia na cidade da Amazônia colombiana em que esla estava, tomar ayahuasca na casa de um bem sucedido curador. Em meio a visões extraordinárias, ela também se sentiu violentamente indisposta:

“O assistente do xamã veio até mim e colocou suas mãos em minhas costas. Ele tinha grandes técnicas de cura, porque ele fez minhas náuseas irem embora. Ele me pediu para me deitar e colocou suas mãos em minha barriga e me senti muito melhor. Então, de repente, do nada, ele colocou suas mãos dentro de minhas calças! Eu tive que me debater para tirá-lo dali e eu ainda estava sob a influência da ayahuasca. Ele sussurrou “tranquila, tranquila” quando eu disse “não, não” empurrei suas mãos pra fora. Ele tentou se deitar perto de mim mas finalmente se retirou. Eu percebi que ele tinha ido auxiliar outras mulheres jovens, ignorando mulheres idosas e homens. As mulheres jovens eram todas forasteiras”.

Uma mulher jovem que participou de uma cerimônia na qual ela era a única forasteira explicou:

“Eu estava tão feliz que o xamã me colocou pra ficar perto dele e estava prestando uma atenção especial em mim. Quando ele começou a se esfregar em meu corpo eu não tinha como imaginar o que ele queria, mas isso logo ficou óbvio quando ele…[ela gesticula para mostrar onde ele colocou suas mãos]…eu o empurrei mas me senti extremamente triste e confusa e até me questionei se aquilo não era parte de minha visão com ayahuasca. Eu também me senti assustada uma vez que as visões só tinham começado e eu me estava abandonada pela pessoas responsável por guiar minha experiência. Eu passei o tempo todo tendo que resistir às visões do medo de perder o controle…eu fiquei me questinoando sobre o que eu poderia feito de errado para fazê-lo pensar que isso poderia ser algo OK. Ele era um conhecido e respeitado xamã. A única coisa que parecia fazer sentido era, das duas uma, ou que a visão dele sobre as mulheres ocidentais aprendida através do cinema o fez imaginar que éramos todas ‘vagabundas’ ou que ele de alguma forma interpretou meu entusiasmo em relação ao seu trabalho como algo sexual. The only thing that makes sense is that either his opinion of western women from cinema made him feel that we were all sluts or that somehow he interpreted my enthusiasm toward him to be sexual. Para mim foi isso, e eu nunca mais bebi ayahuasca de novo”.

Assédio sexual também acontece em settings locais ou indígenas. O termo utilizado é “fastidiar” (molestar), que implica um comportamento masculino normalizado. Mulheres indígenas são reticentes quanto a beber ayahuasca com um xamã desconhecido a não ser que estejam acompanhadas pela família, amigos, e/ou por seus filhos. Uma amiga indígena em Puesto Maldonado o que aconteceu a ela quando ela tomou ayahuasca com um xamã urbano local:

“Eu cheguei com meus dois meninos. Ele me olhou. Ele disse que eu estava muito doente e correndo risco de morte, e que pessoas haviam feito coisas terríveis a mim com daño (dano intencional). Ele colocou meus meninos em um quarto separado e preparou um cobertor para deitar. Eu imediatamente senti que suas intenções não eram boas, e que eram sexuais. Procurei dar algum tempo para ver se era isso mesmo mas cada sinal imaginável era ele me dizendo que ia se precipitar sober mim: o ton de sua voz, o jeito que me me olhava, a maneira que me tocou, e finalmente me separando de minhas crianças. Eu nunca bebi ayahuasca com ele, porque eu saí antes que qualquer coisa pudesse acontecer. Já tinha acontecido antes, mas eu era idiota na época, confiando em todo mundo”.

Alguns casos de sedução sob a influência da ayahuasca são mutuamente consensuais. Ainda assim, muitas pessoas acreditam que a responsabilidade última sobre esses casos recaem sobre o xamã, que Some cases of seduction under the influence of ayahuasca are mutually consensual. Yet,  many believe that the ultimate accountability lies with the shaman, que é responsável tanto por resistir às suas excitações quanto a mulheres fascinadas, de modo a procurar abordagens de cura que não estejam concentradas em seu pênis.

Reações ao Sexo e à Sedução: Considerações globais e locais

O assédio sexual colide com os vários motivos pelos quais as mulheres querem tomar ayahuasca. A maioria das turistas ayahuasqueiras geralmente estão procurando por desenvolvimento pessoal e espiritual, cura emocional, e o desenvolvimento da autoconsciência individual. Além disso, muitos participantes interessados na cura espiritual foram eles mesmos vítimas de abuso sexual quando crianças e com isso sentem ainda mais que investidas sexuais de xamãs são crueis e emocionalmente danosas.   Isso é agravado por uma tendência a idealizar xamãs, mascarando assim as fronteiras que turistas ayahuasqueiros normalmente encontram em contextos estruturados hierarquicamente em relação à questão de gênero.

Uma resposta pública comum de se encontrar é a afirmação de que esses homens não seriam “verdadeiros xamãs”, e seriam assim “inautênticos”. Essas posições não levam em conta que xamãs são seres humanos que possuem falhas e podem cometer erros, eventualmente graves.

Uma resposta pública comum de se encontrar é a afirmação de que esses homens não seriam “verdadeiros xamãs”, e seriam assim “inautênticos”. Essas posições não levam em conta que xamãs são seres humanos que possuem falhas e podem cometer erros, eventualmente graves. Elas também negligenciam as possibilidades históricas e atuais de que mulheres indígenas também podem ser eventualmente assediadas dentro do contexto do xamanismo tradicional. Além disso, tais narrativas ignoram a necessidade de reescrever e reinterpretar o panorama de gênero para muitos praticantes locais que agora passam a viajar para o exterior frequentemente, bem como o expressivo número de xamãs ocidentais e aprendizes que são agora completamente conscientes do fascínio ocidental e da mística que rondam as ideias e projeções sobre os xamãs.

Se nós queremos entender os xamãs a partir de uma perspectiva ocidental mais ampla, então claramente os avanços de natureza sexual são antiéticos. Se vamos prestar atenção às perspectivas locais ou indígenas, também vamos observar que tal comportamento é desaprovado. As mulheres que entrevistei e que experienciaram tais comportamentos claramente o atribuem a um abuso de poder tanto em termos de gênero como em termos comunitários e sociais.

Loalmente, relações indígenas de gênero variam, embora haja uma noção predominante de que na maioria das circunstâncias as mulheres vão se render a avanços sexuais de homens se elas se encontrarem em uma posição de vulnerabilidade, pois tal comportamento está alinhado com as expectativas de gênero. Para contornar sua vulnerabilidade, mulheres indígenas evitam sorrir diretamente para homens, dar risada com eles, prestar muita atenção a eles, permanecer em sua presença sem um parente próximo, bem como viajar sozinhas. Não é coincidência que essas precauções descrevam a maioria das mulheres forasteiras que participam de cerimônias ayahuasqueiras, particularmente se elas abertamente estimam o xamã, conversam e dão risada livremente, são desimpedidas por laços locais, e viajam sozinhas.

Historicamente na Amazônia, a exposição de povos locais à mulheres ocidentais acontece especialmente através do cinema e do turismo. No primeiro, mulheres são retratadas como sexualmente abertas. Juntando-se a isso, a moda e os gestos de mulheres turistas estão frequentemente em conflito com nosmas locais de gênero, o que faz com que seu comportamento possa ser interpretado e lido de forma equivocada. Esse desencontro e possíveis mal entendidos sobre códigos de gênero, embora sejam um dado relevante, não podem, evidentemente, justificar o aumento da exploração sexual de mulheres por xamãs.

O xamanismo ayahuasqueiro também não pode ser apartado dos incentivos econômicos que vão motivar sua recente proliferação.

O xamanismo ayahuasqueiro também não pode ser apartado dos incentivos econômicos que vão motivar sua recente proliferação. Uma mulher sul americana bastante experiente descreveu como um xamã peruano itinerante com o qual ela era bem relacionada passou anos seduzindo mulheres dentro do contexto cerimonial da ayahuasca: “Ele fazia sexo com mulheres que ele escolhia estratégicamente e que poderiam ajudá-lo a organizar cerimônias, abrir as portas, fazer contatos, etc. Ele iria sempre escolher mulheres com aporte financeiro considerável e que seriam potenciais participantes recorrentes que poderiam trazer novas clientes para suas sessões, ou mulheres que eram jovens e bonitas, como foi revelado que ele havia feito por anos”.

Maloca construída para turistas em Madre de Dios, Peru. Foto de Daniela Peluso

Conclusões

Em casos onde a sedução é tentada, o embate entre o imaginário e as visões de mundo do xamã e da participante é flagrante.

Com o advento do turismo da ayahuasca, na medida em que os rituais de ayahuasca se transformam, os códigos não escritos do que é e do que não é considerável como transgressões aceitáveis – códigos esses normalmente ditados pela cultura, território, aprendizado e socialização- são empurrados cada vez mais para o segundo plano por conta desse encontro entre o local e o global e entre xamãs específicos (sejam eles fracos, perdidos, ambiciosos, pervertidos ou sexistas) e participantes específicos (sejam elas desinformadas, doentes, românticas ou idealistas). Em casos onde a sedução é tentada, o embate entre o imaginário e as visões de mundo do xamã e da participante é flagrante.

No interior do variado espectro de xamãs e participantes, é a confluência de xamãs que veem mulheres como presas fáceis com mulheres que idealizam xamãs que acaba por exacerbar a tendência de sedução no contexto ritual da ayahuasca. Por essas razões, sustento que esse artigo não tem o objetivo de depreciar os benefícios e a legitimidade de rituais de ayahuasca, mas sim de impulsionar a tomada de consciência das condições que criam essas possibilidades dentro de contextos rituais. À guisa de conclusão, a crescente incidência de sedução inapropriada e indesejável por parte de xamãs em direção a mulheres turistas são manifestações e repercussões das dissonâncias entre as dinâmicas globais e locais de usos e práticas com ayahuasca, bem como das disparidade entre noções de relações de gênero, ética entre curador e participante, usos apropriados de poder, e reflexos dos contextos econômico e político mais amplos dentro dos quais essas dinâmicas são criadas.


Nota:

Esse artigo é um fragmento do texto ‘Ayahuasca’s Attractions and Distractions: Examining Sexual Seduction in Shaman-Participant Interactions’, originalmente publicado na coletânea Ayahuasca Shamanism: In the Amazon and Beyond (2014), editada por Beatriz C. Labate e Clancy Cavnar, e publicada pela Oxford University Press. A autora agradece à Emily Sinclair for editing the original.

Tradução para o português: Glauber Assis
Arte de  Fernanda Cervantes.
Texto originalmente publicado em inglês pelo Chacruna Institute.

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