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Psicodélicos e a morte: partindo desse mundo com consciência

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Escritora e editora freelance. Desde 2018, Jasmine tem trabalhado para a editora independente Synergetic Press. Ela também escreve para o Chacruna, o Psychedelics Today, e o Lucid News.

Escritora y editora freelance. Desde 2018, Jasmine ha trabajado para la editorial independiente Synergetic Press. También escribe para Chacruna, Psychedelics Today y Lucid News.

Dentro da comunidade de pesquisa psicodélica, há um corpo crescente de pesquisas mostrando como os psicodélicos podem facilitar o processo das pessoas lidarem com a morte. Entretanto, indo muito além dos limites da ciência, os psicodélicos têm sido usados para apoiar homens e mulheres em seu encontro inexorável com a morte por um longo tempo. Trabalhando nos bastidores, existe uma comunidade crescente de parteiras psicodélicas da morte ou doulas do fim da vida que foram treinadas para ajudar os indivíduos na transição da existência com leveza e acolhimento. 

De muitas maneiras, a cultura ocidental contemporânea tem fobia da morte, e até mesmo o ato de abordar o tema é considerado tabu ou algo que traz azar, como se falar sobre a morte pudesse de alguma forma invocá-la. Verdade seja dita, contudo, não importa o quanto tentemos nos afastar do diálogo, a morte é uma coisa que une todos nós. Tão certo como nascemos, o fato de um dia morrermos se apresenta como uma inevitabilidade para todos os seres humanos. Mesmo assim, a maioria de nós prefere se distrair dessa realidade factual, empurrando-a para longe de nossa consciência.

“A morte é uma coisa que une todos nós”.

Então, o que exatamente há na morte que nos leva a evitá-la tão fervorosamente? Talvez um de nossos maiores medos em torno da morte seja o medo do desconhecido. Mesmo no mundo de hoje, onde a ciência se esforça para iluminar o mistério, não podemos medir, quantificar, ou tirar conclusões firmes sobre o fim da vida.

A medicina moderna é especialista em nos manter vivos. Assim, em vez de ser percebida como algo natural, a morte é agora considerada como o fracasso final da medicina. Mas e se pudéssemos mudar o diálogo em torno da morte, e começar a falar sobre ela de forma mais aberta e honesta? É aí que entram as parteiras da morte e as doulas de fim de vida.

A dead flower with a background of blue and orange hues.
“A morte é um bonito pôr do sol” , por Unitopia, está registrada sob o código r CC BY-NC-ND 2.0.

O mundo undergroud das doulas psicodélicas da morte

Uma doula ou parteira psicodélica é uma ocupação da que você não deve ter ouvido falar, pois elas operam em grande parte nos bastidores e no cenário underground, com bastante discrição. A doula da morte trabalha com as pessoas durante seu processo de morte e às vezes até mesmo no próprio momento da transição. No entanto, um indivíduo não precisa estar morrendo para obter o apoio de uma doula em fim de vida, pois uma pessoa saudável também pode querer seu suporte. Uma parteira da morte cuida da logística e legalidades da morte, projetando serviços funerários adequados ao indivíduo, bem como fornecendo apoio prático e espiritual para o fim consciente da vida, às vezes com o uso de substâncias psicodélicas. 

No entanto, pra começar a conversa, não é necessário trabalhar estritamente com substâncias psicodélicas para ser uma doula do fim da vida. Mangda Sengvanhpheng, doula da morte e fundadora do BACII, uma plataforma dedicada a remodelar a conversa em torno do tema, compartilhou um pouco a respeito de sua experiência do que significa estar envolvida neste trabalho de forma mais geral.

“Ser uma doula da morte significa fornecer apoio e educação compassiva e não médica àqueles que estão enfrentando a morte, o processo de morte ou a preparação para o fim da vida”.

Mangda Sengvanhpheng

Ser uma doula da morte significa fornecer apoio e educação compassiva e não médica àqueles que estão enfrentando a morte, o processo de morte ou a preparação para o fim da vida , compartilha ela. “Cada doula pode oferecer e incorporar ao atendimento suas próprias habilidades específicas ou áreas de especialidade. Isso pode incluir a vigília com a pessoa acamada, cuidados emocionais e/ou espirituais, apoio ao luto, preparação ou encerramento de assuntos profissionais e pessoais, preparação do legado de trabalho da pessoa, planejamento de fim de vida e muito mais.”

Seja envolvendo substâncias psicodélicas ou não, a arte de partejar a morte tem a ver com reimaginarmos os modos como vivemos e morremos. “Ao trazer consciência e compreensão para tópicos difíceis como perda, luto e morte, podemos mudar a maneira como cuidamos de nós mesmos, de uns dos outros e também de como vivemos a vida”, compartilha Sengvanhpheng.

Psicodélicos, morte e dissolução do ego

Os psicodélicos vem sendo há muito tempo associados à morte, embora não necessariamente a morte do tipo físico. As substâncias psicodélicas induzem um estado do tipo místico que é comumente conhecido como morte do ego, ou dissolução do ego na literatura científica. Em uma experiência de dissolução do ego, nosso senso comum e biográfico do “eu” se derrete e se dissipa em uma consciência “cósmica” maior.

A experiência da morte do ego pode ser alegre e extasiante, e ao mesmo tempo produzir sentimentos de medo e terror. Talvez em um paralelo com a morte real, neste estado podemos chegar à conclusão de que somos muito mais do que nosso corpo e nossa experiência de vida. Em vez disso, os limites do eu-reflexivo se desdobram em algo muito maior. Este processo pode ser totalmente aterrador. Contudo, se nos rendermos a seus desdobramentos, também pode ser uma experiência curativa e transformadora.

Talvez seja a capacidade dos psicodélicos de induzir experiências de morte do ego que os torna tão benéficos para aqueles com diagnósticos terminais, permitindo-lhes enfrentar a morte ainda prematuramente, de alguma forma. De fato, um ensaio duplo-cego randomizado de 2016, realizado por pesquisadores da Universidade Johns Hopkins, relacionou a capacidade da psilocibina de diminuir a depressão e a ansiedade em pacientes com câncer com diagnósticos terminais às experiências do tipo místico, através de doses mais altas da substância. Refletindo sobre a experiência, um participante do estudo compartilhou: “Tenho a sensação de que a morte não é o fim, mas parte de um processo, uma maneira de se mover para uma esfera diferente, uma maneira diferente de ser”.

“Se entrar e aceitar a morte do ego dentro do estado psicodélico pode ajudar a curar parte do medo e da ansiedade sobre a própria morte”.

Quando somos confrontados com a morte, é natural que nosso ego reaja com medo, tentando apegar-se à auto-identidade subjetiva que há muito nutrimos e conhecemos. Entretanto, se entregar e aceitar a morte do ego dentro do estado psicodélico pode ajudar a curar parte do medo e da ansiedade sobre a própria morte, na medida em que somos agraciados com a compreensão de que há algo maior além; de que a morte não é necessariamente um ponto final.

Reconhecendo o potencial transformador da experiência de morte do ego desde cedo, Timothy Leary, Ralph Metzner e Richard Alpert, mais tarde conhecido como Ram Dass, escreveram juntos a obra The Psychedelic Experience (A Experiência Psicodélica), concebida como um manual do usuário criado com o propósito de usar substâncias psicodélicas para navegar no ciclo da morte, do bardo e do renascimento estabelecido pelo Bardo Thödol, ou Livro Tibetano dos Mortos. No budismo tibetano, os bardos são os estados de existência que permeiam o reino entre a morte e o renascimento. O Livro Tibetano dos Mortos, aliás, dá a maior importância ao estado de consciência no momento da morte, fazendo esforços para orientar e apoiar a pessoa moribunda a atingir um estado de consciência mais elevado nessa situação.

Laura Huxley, a primeira parteira da morte conhecida

Parcialmente inspirado pelo manuscrito não publicado de Leary, Alpert e Metzner, e tendo seu próprio interesse de longa data no Bardo, o escritor e filósofo inglês Aldous Huxley decidiu fazer a transição da vida com 200 microgramas de LSD bombeado através de seu sangue

Diagnosticado com câncer de laringe em 1960, a saúde de Huxley se deteriorou lentamente até o momento em que morreu em 1963. No período que precedeu sua morte, ele não tinha utilizado psicodélicos por mais de dois anos, e pensou sobre isso com freqüência em suas últimas semanas de vida, dizendo a si mesmo que os exploraria mais uma vez quando se sentisse melhor, e de acordo com sua esposa, Laura Huxley, ele era inflexível em sua crença de que iria melhorar.

No entanto, em suas últimas horas, quando sua condição piorou, ele decidiu conscientemente que queria ingerir LSD. Laura, sua esposa, administrou-lhe duas doses intravenosas de 100 microgramas. Laura escreveu um relato da morte de Aldous, feito principalmente para amigos e familiares, e que seriam publicados mais tarde em suas memórias sobre seu marido. Ela escreveu: “Aldous morreu enquanto vivia, fazendo o seu melhor para desenvolver plenamente em si mesmo um dos elementos essenciais que ele recomendava aos outros: Consciência”. Aldous sentiu que sua saída de seu corpo poderia diminuir sua consciência e assim prescreveu o que ele chamava de seu próprio “sacramento”.

A mural of Aldous Huxley looking weary painted on an old stone wall
“Retrato pintado de Aldous Huxley” , de Abode of Chaos , está registrado sob o código CC BY 2.0.

Agindo como parteira da morte de seu marido, Laura o lembrou o tempo todo de não se deixar apanhar por visões, que no budismo tibetano são consideradas ilusórias, já que ele morreu. Ela procurou então guiá-lo continuamente a caminhar em direção à luz pura. Sussurrando-lhe gentilmente, ela disse: “Com vontade e consciência você está indo, de boa vontade e consciência, e você está fazendo isso de forma tão bela; você está fazendo isso de forma tão bela – você está indo em direção à luz – você está indo em direção à luz – você está indo em direção a um amor maior – você está indo para frente e para cima”.

Especula-se que a decisão de Aldous Huxley de usar LSD durante seu processo de falecimento também estava ligada ao trabalho de um clínico pouco conhecido, o Dr. Eric Kast. Kast foi na verdade um dos primeiros pesquisadores a descrever o impacto do LSD sobre a morte e seus possíveis benefícios em pacientes terminais. Já em 1964, Kast publicou uma pesquisa apontando o LSD como um analgésico, fornecendo suporte para seus efeitos de controle da dor. Com esta constatação, Kast testou experimentalmente o LSD em mais de 300 pacientes terminais com câncer, encontrando relatos de que o LSD poderia ser útil não apenas para diminuir a dor física, mas simultaneamente reduzir a ansiedade existencial e a angústia relacionada ao diagnóstico de fim de vida. Mais tarde, em 1970, Kast autorizou um artigo explorando o LSD como um tratamento para o medo em torno da morte.

O chamado para modos mais compassivos de morrer

Apesar dos inúmeros estudos que sugerem que os psicodélicos, em particular a psilocibina, são capazes de ajudar os indivíduos a fazer as pazes com a morte, eles ainda não estão legalmente disponíveis para este fim. Reconhecendo esta injustiça, há um processo judicial em andamento no qual pacientes terminais estão processando a Drug Enforcement Agency (DEA) dos Estados Unidos por sua recusa em liberar a aplicação de psilocibina em cuidados de fim de vida.

O processo em andamento é uma extensão do trabalho do médico paliativo de Seattle, Dr. Sunil Aggarwal. No início deste ano, Aggarwal levou o DEA ao tribunal pela recusa da agência em permitir que a psilocibina pudesse ser aplicada legalmente em pacientes terminais. A luta pela expansão do acesso ao cuidado psicodélico foi baseada na premissa das leis estaduais e federais existentes que dão aos pacientes com condições de risco de vida o direito de experimentar tratamentos experimentais que ainda não foram aprovados pela FDA para uso.

Em 2018, o então Presidente Donald Trump assinou uma lei federal de direito de experimentação (Right to Try Act), permitindo que pacientes com doenças terminais em todos os EUA pudessem experimentar medicamentos que ainda não foram aprovados. A rejeição do pedido da Aggarwal pelo DEA afirmou que a petição do médico não tinha autoridade para renunciar à Lei Federal de Substâncias Controladas (Controlled Substances Act), apesar da Lei do Direito de Experimentar.

Em comparação com os EUA, o uso da psilocibina como tratamento paliativo para pacientes terminais tem sido permitido, em análise caso a caso, no Canadá. Em agosto de 2020, a TheraPsil, uma entidade canadense sem fins lucrativos que facilita o acesso à psicoterapia legal com psilocibina para indivíduos que sofrem de sofrimento em fim de vida, abriu um precedente quando quatro canadenses com câncer terminal obtiveram isenções legais para usar psilocibina com a orientação de um terapeuta aprovado pelo Ministério da Saúde do Canadá. Desde março de 2021, o Ministério da Saúde do Canadá já aprovou isenções para mais de 50 pacientes para psicoterapia legal com psilocibina.

Dado que uma única dose de psilocibina demonstrou produzir resultados tão dramaticamente promissores para lutar com a transição para o outro lado, parece totalmente antiético negar este tipo de alívio a indivíduos doentes terminais. Talvez uma extensão do movimento de liberdade cognitiva, a idéia de que os seres humanos deveriam ter soberania sobre sua consciência, deveria aplicar-se igualmente à morte. Todas as pessoas têm o direito de escolher como partir deste mundo, e por isso falar sobre novas abordagens a respeito da morte e do processo de morrer é de importância crescente.

“Todas as pessoas têm o direito de escolher como partir deste mundo, e por isso falar sobre novas abordagens a respeito da morte e do processo de morrer é de importância crescente”.

Sem dúvida, uma mudança crítica radical precisa acontecer na forma como entendemos e lidamos com a morte e o processo de fim da vida. Ponderando sobre essa mesma questão, ao mesmo tempo em que oferece seu próprio relato a respeito da morte de Aldous Huxley, Laura Huxley escreveu: “Agora, sua maneira de morrer deveria permanecer para nós, e somente para nós, como um alívio e um consolo apenas, ou outras pessoas também deveriam se beneficiar com isso? Não nascemos todos de maneira tão nobre? Não temos também o direito de morrer nobremente?” A morte é tão individual e única como a pessoa que viveu, e, quer seja sob a influência de um psicodélico ou não, ter o apoio amoroso e a orientação gentil de uma doula da morte para ajudar no processo de transição poderia ajudar muitas pessoas a partir deste mundo nobremente, com a dignidade e a compaixão que merecem.

Arte de Mariom Luna
Tradução de Glauber Assis

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