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Professora de antropologia e coordenadora do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade Federal do Paraná. Realizou pesquisas sobre organização social e xamanismo entre os Yaminawa (Amazônia Peruana).

“Durante a noite, vi meu vovô no meu sonho e ele curou a minha mão”. Havia dias que Pitsipini estava com a mão inchada. Até o momento, tinha atribuído o inchaço a um golpe, mas durante aquela conversa onírica, seu avô lhe revelou que ele mesmo era o causante porque estava com raiva do neto. Sendo o causante e portanto o “dono” desse feitiço leve, ele mesmo devia ser quem o resolvesse, o que fez durante o estado onírico.

O sonho, afirmam os Yaminawa (pano, Amazônia peruana), é um estado similar àquele produzido pelo consumo de ayahuasca: quando sonhamos, a “alma dos olhos”, sai do corpo. Trata-se de uma dimensão da realidade na qual as distâncias espaço-temporais parecem ficar em suspenso. Nesse espaço onírico as possibilidades de interação consciente com outros seres se multiplicam, envolvendo um aumento dos perigos, ao mesmo tempo que o incremento das possibilidades de obter conhecimentos.

Quando sonham, os Yaminawa podem se relacionar com os mortos, com pessoas que moram longe, com os espíritos wëro mëxë dawa que habitam no céu, ou com seres que durante a vigília veem sob forma animal ou vegetal. Dessa forma podem conhecer o que se passa com parentes que estão longe, se inteirar do que acontece perto, mas que não enxergam acordados, ou ver coisas que ocorrerão. Os sonhos mostram, por exemplo, se um ser querido vai chegar de visita ou vai adoecer; se o esposo ou esposa está tendo uma aventura; quem roubou o dinheiro que sumiu, ou se tem um bando de queixadas por perto. A vida diurna e em vigília se desdobra, dessa forma, numa atividade onírica e noturna que é essencial para a existência social, produtiva e afetiva das pessoas.

A atividade sonial tem especial importância durante os processos de iniciação xamânica, já que os ihu, ou donos, das substâncias xamânicas que os iniciandos ingerem lhes transmitem cantos e outros saberes. “Em sonhos, a sucuri ensinou tudo àquele homem que engoliu e depois vomitou”. Essa frase resume o mito yaminawa que explica como os homens aprenderam a usar as substâncias xamânicas e as plantas por meio das quais se pode fazer sarar ou adoecer as pessoas. Durante os processos de aprendizado xamânico, os iniciandos encarnam aquele homem mítico. Após ingerir uma substância extraída do corpo da sucuri, recebem dela poder e conhecimentos. Assim o narra Xawaxta a partir da sua própria experiência:

“Nós tomamos a merda da sucuri […] Então, ela te ensina em teus sonhos, essa sucuri. Você pode sonhar com a sucuri. A sucuri, em teus sonhos, está rezando (kuxuai). […] Eu sonhava com os pajés, eu sonhava com os que estão fazendo kuxuai, com plantas medicinais. Você sonha tudo. Você sonha que está coletando plantas medicinais, você sonha que está rezando às pessoas, daí você acorda e reza”.

Além desse papel central na iniciação, junto com as visões de ayahuasca, o sonho é um meio fundamental para estabelecer o diagnóstico quando alguém adoece: comer alguma coisa oferecida por outra pessoa, ser agredido ou se encontrar encerrado num espaço mínimo são exemplos de sonhos típicos quando ocorre uma agressão xamânica. A alma do sonhador pode ser objeto de ações que o levem à doença ou a morte. Nesse sentido, entender os sonhos, próprios e dos outros, faz parte dos conhecimentos xamânicos, mas apenas pessoas com essas qualidades desenvolvidas em alto grau, como o avô de Pitsipini, tem também a capacidade para agir nesse espaço onírico, de nele “exercer seu poder para afetar o mundo” (Kracke, 1992).

Se a ayahuasca produz visões, a substância que, entre os Yaminawa, potencia o sonhar é o tabaco. Não é raro ver as pessoas, especialmente os mais velhos, fumando seus cachimbos, xinimote, no fim da tarde, antes de ir dormir com o objetivo de propiciar os sonhos.

Se a ayahuasca produz visões, a substância que, entre os Yaminawa, potencia o sonhar é o tabaco. Não é raro ver as pessoas, especialmente os mais velhos, fumando seus cachimbos, xinimote, no fim da tarde, antes de ir dormir com o objetivo de propiciar os sonhos.

Matayama fumando e assoprando os pés doloridos do seu marido. Raya (rio Mapuya), 2001. Foto da autora.

Fumar é a forma mais corriqueira de consumir o tabaco; porém, não é de forma alguma a única. Os Yaminawa conhecem vários modos de prepará-lo. Os grandes ñuwë do passado são sempre lembrados com uma bola de tabaco na boca, avultando a bochecha, o rubëtõ, que faziam misturando as folhas do tabaco com cinza da jarina. Além de mascar o tabaco, também preparavam o caldo (rubë txatxi), misturando as folhas com água e exprimindo-as. Sua ingestão provoca fortes vômitos e inebriamento. O caldo de tabaco pode ser também cozinhado e misturado com as cinzas de determinadas palmeiras até ficar espesso. Esse rubë sawa deve ser consumido em pequenas quantidades pela sua potência.

Consumido sozinho ou em combinação com outras substâncias (ayahuasca, pimenta, toé ou yunẽ, principalmente), o tabaco é um dos principais potenciadores e veículos do poder xamânico entre os Yaminawa, e, sobretudo, o mais cotidiano. Soprar com tabaco é uma técnica corriqueira para tratar afecções de gravidade diversa e para afugentar espíritos maldosos. Os homens e mulheres mais idosos são frequentemente requeridos para assoprar com tabaco sobre, por exemplo, crianças que dormem de forma muito agitada, que choram ou que têm diarreia. Igualmente, qualquer incomodidade ou dor pontual é aliviada com tabaco. A fumaça arrasta para fora do corpo aquilo que o mazela. Porém, não se trata de uma substância para distúrbios menores. Na falta de ayahuasca, por exemplo, pode muito bem ser usado o tabaco mascado ou o rubë sawa durante a execução dos cantos xamânicos koxuiti num ritual de cura. Não apenas isso, seu uso parece ter uma profundida histórica maior do que a própria ayahuasca.

Na falta de ayahuasca, por exemplo, pode muito bem ser usado o tabaco mascado ou o rubë sawa durante a execução dos cantos xamânicos koxuiti num ritual de cura. Não apenas isso, seu uso parece ter uma profundida histórica maior do que a própria ayahuasca.

Txaiyawade tratando com tabaco a filha da sua neta. Raya (rio Mapuya), 2013. Foto da autora.

A partir da análise dos relatos sobre a prática do xamanismo no passado e de alguns comentários em conversas informais com meus anfitriões yaminawa seria possível, inclusive, aventurar que outrora a ayahuasca não era consumida: “antigamente” – me disse numa ocasião Xawaxta – “eles (se referindo a seus antepassados) não sabiam tomar ayahuasca, viviam apenas do rubë sawa”.

É improvável que cheguemos a confirmar se de fato houve uma época em que não consumiam ayahuasca ou calcular a que época se refere. Entretanto, vale a pena lembrar que outros autores já apontaram a maior “ancianidade” do uso do tabaco como substância xamânica entre os povos ameríndios da região (Brabec de Mori, 2015; Lenaerts, 2004), e a constituição colonial, interétnica e relativamente recente do “xamanismo de ayahuasca” na sua forma genérica atual (Gow, 1994).

No caso dos Yaminawa, tabaco e ayahuasca parecem constituir o núcleo de dois “estilos” de xamanismo, que se justapõem e, em certo sentido, se complementam, mas também se afetam e adaptam entre si.

No caso dos Yaminawa, tabaco e ayahuasca parecem constituir o núcleo de dois “estilos” de xamanismo, que se justapõem e, em certo sentido, se complementam, mas também se afetam e adaptam entre si. Embora assim esboçado possa parecer excessivamente simétrico, existe uma associação, nos relatos e nos mitos, entre o tabaco, a onça, a sução como técnica privilegiada de cura, e um tipo de especialista xamânico, o tsibuya, que deriva seu poder de “pedras” introduzidas no seu corpo, por um lado; e, por outro, entre a ayahuasca, a sucuri, o canto como modo de cura e agressão, e um tipo de especialista, o koxuitia, que age por meio das palavras de seus cantos, sendo este um estilo aparentemente mais recente e horizontal (Pérez Gil, 2006).

Txaiyawade tratando com tabaco seu filho. Raya (rio Mapuya), 2001. Foto da autora.

Seja como for, e apesar de que no fluxo das transformações históricas e conceituais do xamanismo é inegável o destaque da ayahuasca, o tabaco e os sonhos continuam mantendo um lugar central nas práticas e no pensamento dos Yaminawa como modos privilegiados de ação no mundo e de interação com humanos e não humanos.

Bibliografia:

Brabec de Mori, B. (2015). Singing White Smoke: Tobacco Songs from the Ucayali Valley. In A. Russel & E. Rahman (Eds.), The Master Plant – Tobacco in Lowland South America (pp. 89-106). London: Bloomsbury.

Gow, P. (1994). River People: Shamanism and History in Western Amazonia. In N. Thomas & C. Humphrey (Eds.), Shamanism, History & the State (pp. 90-113): University of Michigan Press.

Kracke, W. H. (1992). He Who Dreams. The Nocturnal Source of Transforming Power in Kagwahiv Shamanism. In E. J. Langdon & G. Baer (Eds.), Portals of Power. Shamanism in South America (pp. 127-148). Albuquerque: University of New Mexico Press.

Lenaerts, M. (2004). Anthropologie des indiens Ashaninka d’Amazonie. Nos sœurs Manioc et l’étranger Jaguar. Paris: L’Harmattan.

Pérez Gil, L. (2006). Metamorfoses yaminawa: Xamanismo e socialidade na Amazonia peruana. (Doutorado), UFSC, Florianópolis.

Arte de Mariom Luna

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