Escritora e editora freelance. Desde 2018, Jasmine tem trabalhado para a editora independente Synergetic Press. Ela também escreve para o Chacruna, o Psychedelics Today, e o Lucid News.
Escritora y editora freelance. Desde 2018, Jasmine ha trabajado para la editorial independiente Synergetic Press. También escribe para Chacruna, Psychedelics Today y Lucid News.
A florescente expansão da ayahuasca ao redor do globo engendrou a entrada uma infinidade de práticas e comunidades ayahuasqueiras no cenário urbano, que vão dos povos indígenas Amazônicos e das religiões brasileiras tradicionais até as novas formas de cerimônias neoxamânicas na América do Norte, Europa e outros lugares. Essa série de artigos vai examinar como as práticas e tradições dessas diversas comunidades estão se organizando para lidar com os desafios que emergiram como resultado da pandemia global de coronavírus e as medidas tomadas para mitigar esse impacto.
A COVID transforma a realidade das religiões ayahuasqueiras brasileiras
Os últimos meses tem sido de mudanças catastróficas e catalizadoras. Em questão de pouco tempo, a súbita chegada da pandemia do coronavírus mudou para sempre o mundo como nós o conhecíamos. Vivendo coletivamente uma situação sem paralelo, tudo que nós tínhamos como certo e sólido está se desmanchando diante de nós em meio ao despertar da incerteza.
Nesses tempos desafiadores, nossa crescente necessidade de cura e conexão é sentida por todos e, dessa forma, há um crescimento correspondente na demanda por cerimônias de ayahuasca. Este artigo, como segunda parte de uma série originalmente publicada em inglês pelo Chacruna, observa os efeitos da pandemia no campo ayahuasqueiro brasileiro mais amplo, bem como nas religiões ayahuasqueiras tradicionais, incluindo o Santo Daime e a União do Vegetal.
A chegada da pandemia mudou dramaticamente o panorama para as igrejas ayahuasqueiras e grupos afins. Luiz Fernando Milanez, um Mestre na União do Vegetal (UDV), instituição ayahuasqueira sincrética que possui mais de 18 mil membros, informou que a UDV tem um departamento médico e científico que guia e supervisiona suas ações. Eles chegaram a suspender suas sessões e atividades presenciais no dia 18 de março de 2020.
Entretanto, pouco depois, no dia 04 de julho de 2020, as sessões foram autorizadas novamente, a partir da narrativa de que não havia impedimento legal em nível local e que os protocolos de segurança e saúde recomendados pelas autoridades de saúde foram respeitados. A partir desse momento, a UDV passou a manter regularmente suas cerimônias, embora sem receber adventícios.
Os novos protocolos de saúde e segurança da UDV incluem hospedar cerimônias em espaços abertos sempre que possível, assegurando distanciamento social, obrigatoriedade do uso de máscaras, suspensão das refeições coletivas após as cerimônias, e permitindo aos membros a participação facultativa nas sessões (anteriormente, a participação regular de membros era obrigatória).
As comunidades do Santo Daime e da Barquinha são, em comparação, menos centralizadas em sua organização e, como tal, os grupos locais tem maior flexibilidade para escolher se vão ou não realizar cerimônias. Apesar dessa liberdade, boa parte das igrejas mais representativas da tradição do Santo Daime mantiveram suas portas fechadas por um bom tempo.
Para muitos daimistas, o período de pandemia tem sido especialmente desafiador porque o ano de 2020 marcou o centenário de uma das mais icônicas lideranças da história da religião: Sebastião Mota de Melo, fundador do Céu do Mapiá, a maior comunidade daimista do planeta, que foi um dos principais responsáveis pela expansão internacional do Santo Daime. Desse modo, muitos daimistas tinham se preparado para um ano repleto de celebrações e cerimônias presenciais, com planos de visitar a Amazônia para celebrar esse importante aniversário.
“Eu não sinto que é seguro organizar cerimônias presenciais com aglomeração na pandemia. Quando as pessoas estão numa cerimônia, elas experienciam vivências profundas e intensas, e podem se esquecer dos riscos de contaminação, além de querer se abraçar e manter contato humano próximo. Além disso, em um trabalho espiritual não é incomum que algumas pessoas vomitem, assoem o nariz, espirrem e tussam, e nós também temos a responsabilidade de atender as pessoas que passam por momentos difíceis durante a experiência com a ayahuasca em um nível de proximidade que pode ser arriscado”.
Glauber Loures de Assis, presidente do Céu da Divina Estrela, uma igreja brasileira do Santo Daime, e Diretor Associado do Chacruna Latinoamérica no Brasil, comenta que parou de realizar cerimônias presenciais com ayahuasca durante a pandemia. “Eu não sinto que é seguro organizar cerimônias presenciais com aglomeração na pandemia. Quando as pessoas estão numa cerimônia, elas experienciam vivências profundas e intensas, e podem se esquecer dos riscos de contaminação, além de querer se abraçar e manter contato humano próximo. Além disso, em um trabalho espiritual não é incomum que algumas pessoas vomitem, assoem o nariz, espirrem e tussam, e nós também temos a responsabilidade de atender as pessoas que passam por momentos difíceis durante a experiência com a ayahuasca em um nível de proximidade que pode ser arriscado.”
Loures de Assis tem percebido uma crescente demanda por cerimônias de ayahuasca desde o início da pandemia, notando que “pessoas que tomam ayahuasca há muitos anos geralmente tendem a ser mais preparadas para interromper a participação presencial em cerimônias. Entretanto, existe uma crescente demanda e um mercado bastante aquecido quando falamos de novatos e pessoas jovens.” Ele estima que parte da explicação para o aumento de demanda por ayahuasca é que muitas pessoas acreditam, mesmo sem evidências científicas, que a ayahuasca vai fortalecer seu sistema imunológico d modo a servir como uma forma de proteção contra o vírus. Ademais, a ayahuasca ofereceria uma forma das pessoas lidarem com o turbilhão emocional ativado pela pandemia.
Mudança de práticas e economia de demanda
Desde o início da pandemia, muitas das pessoas que geram retorno financeiro da condução de cerimônias tem precisado ser criativas para encontrar novas maneiras de oferecer serviços e fazer dinheiro. Apesar da resistência de vários dos mais respeitados grupos ayahuasqueiros em realizar cerimônicas presenciais, há quem tenha visto na pandemia uma oportunidade para expandir seu alcance, bem como para fazer dinheiro através da venda de ayahuasca e outras medicinas da floresta como o kambô e o rapé.
Loures de Assis tem observado vários novos grupos e canais se formando nas redes sociais com o principal propósito de comercializar essas medicinas. “Estão vendendo essas medicinas de uma maneira que tenta atingir o maior público consumidor possível, inclusive através de anúncios pagos que oferecem ayahuasca “melhorada” através de técnicas como cromoterapia, musicoterapia ou cristais”, diz Loures de Assis. Ele adiciona ainda que “algumas dessas pessoas estão vendendo microdose de ayahuasca a partir de uma visão estereotipada do universo ayahuasqueiro, usando por exemplo a imagem de um personagem com traços indígenas que eles chamam de “Daiminho”, quando, na verdade, são pessoas que nem de longe estão comprometidas com os povos originários ou com igrejas daimistas sérias”.
Grupos ayahuasqueiros recém formados tem capitalizado suas atividades através da crescente demanda e da oferta reduzida de cerimônias em tempos pandêmicos. “Aqui em Belo Horizonte, temos notícias de pelo menos três ou quatro grupos bastante pequenos recebendo até 50 pessoas por cerimônia, uma vez que poucas instituições estão realizando rituais com ayahuasca”, complementa Loures de Assis.
Bruno Ramos Gomes, psicólogo que pesquisa a ayahuasca como tratamento para o uso problemático de drogas, atesta: “Algo novo que tenho percebido é que há mais pessoas vendendo microdoses de ayahuasca na internet.”
(…) Teríamos aí um fenômeno interessante onde, enquanto o Sul Global exporta a ayahuasca para o Norte Global, o Norte exporta o conceito de microdose de volta para o Sul, o que expressa um processo dinâmico de reinvenção global do uso da ayahuasca.
De acordo com Gomes, a venda de microdoses de ayahuasca é uma tendência relativamente nova, provavelmente influenciada pelo “hype” mais genérico em torno de microdoses de psicodélicos. Bia Labate, Diretora Executiva do Instituto Chacruna, seguindo o insight de Gomes, afirma que “se isso realmente for verdade, teríamos aí um fenômeno interessante onde, enquanto o Sul Global exporta a ayahuasca para o Norte Global, o Norte exporta o conceito de microdose de volta para o Sul, o que expressa um processo dinâmico de reinvenção global do uso da ayahuasca”. Uma vez que a ayahuasca é legal no Brasil por conta da Resolução n.01 do CONAD de 2010, neste país é consideravelmente mais fácil comprar e vender produtos feitos a partir da ayahuasca, que estão disponíveis para consumo a partir de plataformas como Facebook e Instagram.
Microdoses de ayahuasca são uma alternativa atraente para consumidores menos experientes de ayahuasca que não cultivam uma prática previamente estabelecida e não se sentem seguros consumindo doses maiores de ayahuasca por si mesmos. “A propaganda enfatiza que você pode alcançar todos os benefícios da ayahuasca sem o risco de alucinações ou experiências purgativas”, diz Gomes. “Para mim, isso parece uma maneira de seduzir as pessoas e fazer dinheiro a partir da ayahuasca em um momento em que as pessoas não podem comparecer a cerimônias presenciais”.
Há até mesmo mídias sociais e aplicativos feitos especialmente para conectar e informar pessoas sobre quando e onde elas podem encontrar e participar de cerimônias nesses tempos pandêmicos. No geral, esses fóruns são criados por pessoas mais jovens e menos experientes, e tem sido considerados controversos dentro da comunidade ayahuasqueira, além de não nutrirem vínculos com instituições ayahuasqueiras mais antigas e representativas.
Quando a oração se torna virtual
O fato de que o coronavírus dificulta que as pessoas se encontrem em cerimônias presenciais não significa que devemos esquecer a possibilidade de ter experiências coletivas com a ayahuasca. Na tradição do Santo Daime, os praticantes tem mantido sua fé viva através da realização de cerimônias virtuais através do Zoom, e em alguns casos até mesmo através da transmissão por streaming via Instagram e YouTube.
O grupo de Loures de Assis, Céu da Divina Estrela, assim como várias outras igrejas daimistas, é ligado ao Céu do Mapiá, que tem sido anfitrião de muitas cerimônias virtuais e dado permissão aos grupos associados para fornecerem uma pequena quantidade de ayahuasca a seus membros para uso pessoal em cerimônias virtuais coletivas. De acordo com Gomes, que participou de alguns desses rituais virtuais, “nem todas as pessoas consumiam ayahuasca, e o que ouvi das pessoas é que elas tomavam somente uma quantidade simbólica para consagrar a medicina coletivamente, e não para se aprofundar totalmente na experiência”.
“Normalmente nós abrimos uma reunião via Zoom, e iniciamos coletivamente a cerimônia, com todas as pessoas tomando o daime ao mesmo tempo e de forma organizada, como nos rituais presenciais”, diz Loures de Assis. “Nós acreditamos que esse procedimento é mais seguro. Agindo assim podemos acompanhar as pessoas, e se elas tiverem experiências difíceis, elas podem ter o apoio umas das outras. Nós também mantemos um grupo do WhatsApp onde compartilhamos orações, reflexões e textos que cultivamos como uma forma de manter a força coletiva viva durante a pandemia”.
Embora as cerimônias virtuais não sejam consideradas ideais pela maioria dos daimistas, elas servem ao propósito de manter a coesão social no interior dos grupos, promovendo um importante senso de pertencimento e comunidade que as pessoas precisam conseguir durante tempos tão difíceis. “Nós sentimos que essa é uma forma segura de tomar ayahuasca. Se não promovemos esse tipo de encontro, as pessoas começam a procurar pela ayahuasca por elas mesmas, e muitas vezes acabam comprando de fornecedores duvidosos na internet ou frequentando lugares que não oferecem segurança. Ao mesmo tempo, existe um estranhamento em relação às cerimônias virtuais, que trazem uma interação diferente do encantamento e deslumbramento da experiência coletiva presencial em uma igreja”.
De maneira análoga ao Santo Daime, Milanez afirmou que a UDV também organizou discussões e eventos virtuais em datas importantes no calendário da UDV durante os meses de pico da pandemia. Entretanto, o uso desse tipo de tecnologia pela UDV foi para propósitos puramente sociais e não para reuniões espirituais. “No período em que não tivemos sessões, a transmissão de eventos virtuais era organizada pelos núcleos para manter contato com a irmandade. Entretanto, nesses ocasiões nós não bebíamos o chá”.
Olhando para o futuro
Muitos ayahuasqueiros brasileiros são negacionistas, e não acreditam na gravidade do vírus ou na importância das vacinas.
Ao pensar sobre o futuro das cerimônias com ayahuasca, muitos são céticos sobre o retorno de encontros presenciais prematuros com aglomeração de pessoas. Loures de Assis enxerga uma luta renhida no interior da comunidade ayahuasqueira mais ampla no que diz respeito a sua interpretação sobre o vírus e até sobre as vacinas. “Muitos ayahuasqueiros brasileiros são negacionistas, e não acreditam na gravidade do vírus ou na importância das vacinas”, ele diz. A falta de consenso a respeito desse tópico difícil é um desafio para ayahuasqueiros em todo lugar, e a resolução ou exacerbação desses conflitos será um ponto importante para a definição do futuro do campo ayahuasqueiro como um todo. Esse panorama conflituoso parece espelhar a divisão entre ayahuasqueiros que apoiam o presidente Bolsonaro e ayahuasqueiros que protestam contra seu governo.
Talvez seja o momento de desacelerar com as cerimônias ayahuasqueiras e tentar compreender o que essa crise tem nos mostrado sobre nossos padrões de relacionamento com a natureza e com outros seres humanos; em todo caso, essas são questões que tem tudo a ver com a própria ayahuasca em si.
Bia Labate contribuiu com sua própria visão sobre o assunto: “Talvez seja o momentode desacelerar com as cerimônias ayahuasqueiras e tentar compreender o que essa crise tem nos mostrado sobre nossos padrões de relacionamento com a natureza e com outros seres humanos; em todo caso, essas são questões que tem tudo a ver com a própria ayahuasca em si”.
Seja como for, o futuro permanece preocupantemente incerto. Ao mesmo tempo em que estamos todos tomados por nossa dor coletiva pelas pessoas e o mundo que perdemos durante a pandemia, continuamos a nutrir em nossos corações a semente de esperança por um novo mundo que haverá de se tornar realidade.
Arte de Mariom Luna.
Esse texto foi publicado originalmente pelo Chacruna Institute, em novembro de 2020.