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Liberté, Égalité et Fraternité? A luta do Santo Daime por Liberdade Religiosa na França

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Henrique Fernandes Antunes es Doctor en Antropología por la Universidad de São Paulo. Investigador del Programa Postdoctoral Internacional del Centro Brasileño de Análisis y Planificación (CEBRAP). Forma parte del Comité Comunitario de Ayahuasca de Chacruna.

Não é uma novidade que o crescente interesse pela ayahuasca vem sendo acompanhado por uma série de questões legais, perseguições e estigmas sociais. A apreensão de remessas de ayahuasca e as ameaças de prisão estão se tornando cada vez mais frequentes (Labate et al., 2023) à medida que a diáspora mundial da ayahuasca continua a se expandir (Labate e Jungaberle, 2011; Labate et al., 2017; Labate e Cavnar, 2018). Não apenas grupos e usuários da ayahuasca são acusados de uso ilícito de drogas e tráfico de drogas (Feeney & Labate, 2014), eles também são enquadrados como perigosas seitas que praticam lavagem cerebral (brainwashing).

Não apenas grupos e usuários da ayahuasca são acusados de uso ilícito de drogas e tráfico de drogas, eles também são enquadrados como perigosas seitas que praticam lavagem cerebral (brainwashing)

Esse é o caso da França, em particular. Como em muitos países da Europa e América do Norte, o uso da ayahuasca na França começou no final dos anos 90, depois que cidadãos franceses que foram à América do Sul para conhecer o Santo Daime fundaram uma igreja em seu país de origem. Pouco tempo depois, ocorreu a primeira prisão. Em 1999, o líder da igreja do Santo Daime em Paris, Claude Bauchet, e outros seis integrantes foram presos e acusados de uso e tráfico de DMT (Novaes e Moro, no prelo). Após permanecerem sob custódia por três semanas, os integrantes do grupo foram liberados sob fiança. Na época, a antropóloga brasileira Dra. Bia Labate se uniu à luta de Claude Bauchet, ajudando os membros do Santo Daime a preparar sua estratégia legal.

Dra. Bia Labate (ao telefone) trabalhando na estratégia legal de Claude (Acervo Pessoal – Claude Bauchet, 2001)

Enquanto aguardavam seu julgamento, o governo francês emitiu, em junho de 2001, o primeiro relatório sobre a ayahuasca no país. O relatório foi feito pela Comissão de Entorpecentes. Seu objetivo era avaliar o potencial de dependência e abuso da ayahuasca (Commission Nationale des Stupéfiants et des Psychotropes, 2001).

A comissão declarou que “usos não tradicionais” – os quais, segundo o relatório, incluem todas as tradições, exceto o uso indígena restrito à Amazônia – tendem a se transformar em seitas, ou tratados como “etnomedicina”, tornando-se um problema de saúde pública. Três anos mais tarde, dois relatórios farmacológicos sobre a ayahuasca foram publicados na França. O primeiro foi escrito pelo laboratório Toxlab. O relatório reconheceu que não há registros de morte relacionados ao uso da ayahuasca. No entanto, o documento alegou que a ayahuasca poderia causar distúrbios psicológicos e psiquiátricos. Os especialistas também afirmaram que o consumo da ayahuasca fora de seu contexto tradicional poderia levar à fraude, manipulação e “submissão química”. Eles acusaram os grupos ayahuasqueiros de serem seitas perigosas que drogavam seus seguidores sem a devida assistência psicológica e física (Pépin & Duffort, 2004, p. 83).

Esse entendimento também está presente em um relatório desenvolvido pelo Centro de Avaliação e Informação sobre Toxicodependência de Bordeaux (Commission Nationale des Stupéfiants et des Psychotropes/CEIP- Bordeaux, 2004). O documento relatou três supostos casos de submissão química relacionados à ayahuasca. Devemos salientar, entretanto, que, além dessas alegações suspeitas, baseadas em supostos incidentes, nenhuma evidência de um caso real de submissão química associada à ayahuasca foi apresentada, tampouco qualquer prova de que a ayahuasca representa um risco à saúde humana.

Nenhuma evidência de um caso real de submissão química associada à ayahuasca foi apresentada, tampouco qualquer prova de que a ayahuasca representa um risco à saúde humana.

Sobre essa questão, é importante ressaltar que a Agência Francesa de Segurança de Produtos de Saúde (AFSSAPS) define a submissão química como “a administração para fins criminais (estupro, pedofilia) ou delituosos (violência intencional, roubo) de substâncias psicoativas sem o conhecimento da vítima” (AFSSAPS/CEIP-Paris, 2005, 5, tradução nossa). É digno de nota, portanto, que a noção de submissão química nos relatórios sobre a ayahuasca assume uma roupagem inteiramente nova de “lavagem cerebral”, distanciando-se de seu significado original relacionado à indução de um estado de consciência alterado sem o conhecimento da vítima a fim de cometer agressão sexual ou roubo. Este novo enquadramento permitiu ao governo francês classificar os grupos ayahuasqueiros como organizações criminosas.

Apesar desses relatórios altamente questionáveis não apresentarem provas para corroborar as alegações de riscos à saúde associados à ayahuasca, eles se tornaram provas no julgamento dos membros do Santo Daime. Assim, em 15 de janeiro de 2004, o tribunal de Paris condenou Claude Bauchet e os outros seis membros do grupo a 18 meses de suspenção condicional da pena pelos seguintes crimes: importação, aquisição e posse de entorpecentes; uso de entorpecentes; e tráfico de drogas. De acordo com a sentença do juiz: “É evidente que a legislação sobre o consumo ou fornecimento de drogas não pode ser refutada por uma fachada religiosa cuja única finalidade poderia ser contornar a legalidade” (Tribunal de Grande Instance de Paris, 2004, p. 16, tradução nossa).

Após a condenação, os membros do Santo Daime contataram um farmacêutico que era membro da Comissão de Narcóticos, o qual escreveu um parecer contradizendo a posição do tribunal de Paris (Beauverie, 2004). Seu parecer afirmou que a ayahuasca é uma decocção seguida por uma redução e que não pode ser comparada a uma técnica de extração para a produção de DMT, prática considerada ilegal na França. Esse documento de duas páginas apresentado pela defesa teve um papel crucial na absolvição do grupo no processo de apelação.

A decisão do Tribunal de Apelações de Paris reconheceu que a ayahuasca não era classificada como narcótico. Também declarou que “as operações de ‘decocção’, ‘infusão’ ou ‘maceração’ não permitem obter uma ‘substância’, no sentido da Convenção de Viena e da lei francesa, pois não permitem isolar ‘os elementos químicos e seus compostos à medida que ocorrem em seu estado natural ou à medida que são produzidos pela indústria’” (Cour d’appel de Paris, 2005, p. 17, tradução nossa). Portanto, no início de 2005, a Corte de Apelação de Paris absolveu os membros do Santo Daime e encerrou o processo por falta de base legal.

Durante os julgamentos, os temas de seita e de submissão química desempenharam um papel insignificante. O foco do debate foi o enquadramento da ayahuasca como narcótico, não as práticas dos grupos que a consomem. Além disso, ao contrariar a decisão do tribunal de Paris, o Tribunal de Apelação estabeleceu um precedente legal para que a ayahuasca não fosse considerada um narcótico na França.

No entanto, o impacto dessa decisão foi de curta duração, pois apenas três meses após a absolvição do grupo, em maio de 2005, a Comissão de Narcóticos classificou todas as plantas e princípios ativos presentes na ayahuasca como ilícitos (Bourgogne, 2011). O relatório da comissão contou com a intervenção do representante da Missão Interministerial de Acompanhamento e Combate a Desvios Sectarios (MIVILUDES) sobre a ayahuasca. De acordo com Jules Vincent (pseudônimo), membro da comissão à época, o representante da MIVILUDES fez uma apresentação aterrorizante, alegando que havia uma nova e perigosa seita no território francês chamada Santo Daime que promovia o uso da ayahuasca, e exortou a comissão a intervir, proibindo a ayahuasca. Em resposta, Jules argumentou que a questão do Santo Daime ser uma seita ou uma religião não era assunto para a comissão e que esta deveria se limitar a analisar os aspectos químicos, toxicológicos e farmacológicos da ayahuasca (J. Vincent, comunicação pessoal, 12 de julho de 2022).

Sem apresentar evidências científicas para corroborar sua posição, a comissão proibiu a ayahuasca com o argumento de que ela tinha efeitos alucinógenos e um potencial de abuso e dependência (Commission Nationale Des Stupefiants Et Des Psychotropes, 2005). Após a decisão da Comissão de Entorpecentes, a ayahuasca tornou-se ilegal na França, criando um problema legal para o recém absolvido grupo do Santo Daime. No mesmo ano, o grupo e representantes da Takiwasi solicitaram ao Conselho de Estado que retirasse a ayahuasca da lista de entorpecentes (Bauchet et al., 2005). Entretanto, o Conselho rejeitou o pedido, argumentando que a violação da liberdade religiosa, especialmente referente ao Artigo 9 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, era um mal menor, considerando o risco que a ayahuasca representava para a saúde pública (Conseil d’Etat, 2007).

Todavia, os membros do Santo Daime não desistiram, enviando cartas ao Ministério da Saúde e ao Ministério do Interior pedindo-lhes que reconsiderassem a medida, e propondo um diálogo para encontrar uma alternativa para o uso da ayahuasca na França. Na maioria das vezes, as cartas foram ignoradas. Em outras ocasiões, os pedidos foram simplesmente rejeitados sem muita consideração.

Após quase 15 anos de prática do Santo Daime em segredo sem incidentes, Claude Bauchet foi preso novamente em 2019, após uma denúncia anônima às autoridades francesas. Ele passou quatro dias sob custódia, e atualmente aguarda seu segundo julgamento. Mas agora, com a proibição da ayahuasca, a situação é bem diferente. Claude Bauchet é um cidadão francês, aposentado, de 75 anos, que, além de fazer parte de uma religião ayahuasqueira, nunca teve problemas legais na França. Tratado como um criminoso pelas autoridades de seu país, ele pode ser condenado a vários anos de prisão por praticar suas crenças religiosas.

Claude Bauchet durante um trabalho de Santo Daime (Acervo Pessoal, Claude Bauchet, 2018)

Não apenas a postura proibicionista do governo francês é preocupante, mas a classificação das religiões ayahuasqueiras como “seitas perigosas” é extremamente problemática. É importante ressaltar que a proibição da ayahuasca é resultado de uma parceria sem precedentes e inesperada entre o Ministério da Saúde e a MIVILUDES. Assim, uma comissão ligada ao Ministério da Saúde cujo objetivo é regular os riscos potenciais das substâncias do ponto de vista farmacológico e toxicológico decidiu quais práticas culturais e sociais poderiam ser consideradas legítimas e quais deveriam ser classificadas como atos criminosos. É perturbador que uma comissão farmacológica reivindique a autoridade para definir o que é ou não uma religião. Enquanto as decisões judiciais focaram apenas na farmacologia e no enquadramento legal da ayahuasca, o Ministério da Saúde deixou a arena secular e se juntou ao debate teológico sobre cultos e religiões, não apenas classificando a bebida como potencialmente perigosa, mas também estigmatizando grupos de ayahuasca como movimentos criminosos clandestinos.

Em uma clara violação dos direitos humanos, o governo francês se esconde atrás de acusações infundadas para cercear a liberdade de seus cidadãos. Essa decisão arbitrária foi tomada sem apresentar evidências e ignorando não apenas o conhecimento antropológico disponível sobre o valor religioso e cultural da ayahuasca, mas também os dados científicos sobre a não toxicidade da bebida. Apesar das alegações sobre os supostos riscos que a ayahuasca representa para a saúde e ordem públicas, é evidente que o que realmente está em jogo são os dispositivos que o governo francês utiliza para reprimir minorias religiosas que não estão alinhadas com o poder hegemônico da laicidade no país.

O Chacruna Institute for Psychedelic Plants Medicines fundou o Council for the Protection of Sacred Plants e o Ayahuasca Community Committee a fim de difundir a conscientização sobre a luta pela liberdade religiosa da ayahuasca e ajudar os grupos a navegarem problemas legais.

Seguindo o trabalho pioneiro da Dra. Bia Labate desde o final dos anos 90, o Chacruna Institute for Psychedelic Plants Medicines fundou o Council for the Protection of Sacred Plants e o Ayahuasca Community Committee a fim de difundir a conscientização sobre a luta pela liberdade religiosa da ayahuasca e ajudar os grupos a navegarem problemas legais. A mais recente iniciativa do Chacruna, o livro Religious Freedom and the Global Regulation of Ayahuasca (Labate & Cavnar, no prelo), é uma prova do compromisso incansável do instituto em compreender, do ponto de vista acadêmico, a legalidade das plantas sagradas, oferecendo um contexto detalhado da regulamentação da ayahuasca em uma escala global e assumindo a missão de proteger e apoiar a ayahuasca e seus usos.

Para apoiar a luta legal do Santo Daime na França, doe aqui.

Arte de Mario Luna.


Referências Bibliográficas

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