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Agonia e êxtase na Amazônia: O tabaco e os xamãs beija-flores do Peru

Neste artigo, Glenn H. Shepard Jr. apresenta um relato colorido e detalhado de sua experiência na Amazônia com os xamãs Matsigenka do Peru, que têm uma forte relação com o tabaco e os beija-flores. Durante essa jornada, foi possível aprender muito sobre as práticas e crenças Matsigenka e as lições que vêm com essas experiências espirituais.

Glenn H. Shepard Jr.
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El Dr. Glenn H. Shepard Jr. es antropólogo, cineasta e investigador titular de la División de Ciencias Humanas del Museo Goeldi de Belém (Brasil). Forma parte del Consejo Asesor de Chacruna.

Dr. Glenn H. Shepard Jr. é antropólogo, cineasta e pesquisador titular da Divisão de Ciências Humanas do Museu Goeldi em Belém (Brasil). Ele faz parte do Conselho Consultivo do Chacruna.

E, ah, pensar como é fino o véu que jaz

Entre a dor do inferno e o paraíso!

– George William Russell, “Janus”
Foto de Glenn H. Shepard Jr.

Nunca diga a um xamã Matsigenka que seu rapé de tabaco é algo além de katsi, “extremamente doloroso”.

Aprendi essa lição da mesma forma que aprendi a maioria das minhas lições durante o trabalho de campo etnográfico e na vida em geral: da maneira mais difícil. Há muitos anos, em uma aldeia nas cabeceiras do rio Manú, na Amazônia peruana, meu amigo Shumarapage me iniciou nas delícias pungentes do seri, um pó fino e verde de tabaco e cinzas que os homens Matsigenka sopram vigorosamente nas narinas uns dos outros para dissipar a fadiga, tratar resfriados, criar laços de amizade, compartilhar poderes xamânicos ou simplesmente ser esmagados.

Naquela primeira vez, Shumarapage me puniu com uma overdose intencional. “Só mais uma baforada”, ele dizia, até que dez baforadas depois eu estava deitado em uma poça de catarro verde e vômito, enquanto uma multidão de homens bêbados de cerveja de mandioca riam ao meu redor (os Matsigenka têm um senso de humor bastante severo).

Entre os Matsigenka, um episódio como esse não é motivo de vergonha: pelo contrário, espera-se que os convidados exagerem como sinal de agradecimento. Assim, apesar dessa iniciação traumática, logo passei a saborear a picada aguda do tabaco, a desejar a euforia da nicotina e até mesmo a apreciar os acessos de vômito purificadores que às vezes se seguem a uma farra.

LOGO PASSEI A SABOREAR A PICADA AGUDA DO TABACO, A DESEJAR A EUFORIA DA NICOTINA E ATÉ MESMO A APRECIAR OS ACESSOS DE VÔMITO PURIFICADORES QUE ÀS VEZES SE SEGUEM A UMA FARRA…

Os homens Matsigenka geralmente compartilham o tabaco ao anoitecer, quando o fogo da cozinha começa a tremular contra a parede negra da floresta circundante e as cigarras, sapos e pássaros noturnos se preparam para uma sinfonia que dura a noite toda. Dois homens, geralmente cunhados ou outros parentes próximos, sentam-se um de frente para o outro em uma esteira de cana suja na praça arenosa entre as casas de palha, onde as mulheres cozinham, fofocam, cuidam dos jovens e riem enquanto as crianças dormem ou brincam (atualmente as mulheres raramente participam da partilha de rapé).

Os homens geralmente estão sujos e cansados, pois acabaram de chegar de suas roças ou de uma incursão de caça. Eles podem conversar em voz baixa por alguns minutos sobre as tarefas e revelações do dia – queixadas surrupiando a plantação de mandioca, rastros de anta ao longo do córrego – ou podem estar muito cansados e permanecer em silêncio. Um deles enfia a mão em uma bolsa de redinha pendurada no peito e retira uma concha de caracol gigante, branca e polida como porcelana por anos de uso, conhecida como pompori em Matsigenka. Ele extrai um chumaço de tecido do orifício da concha, tomando cuidado para não derramar o precioso pó verde armazenado em seu interior. Ele bate na concha com as juntas dos dedos, inclinando-a ligeiramente para baixo para que o pó se desloque das entranhas espiraladas em direção à boca da concha.

O dono do tabaco ergue seu seritonki, ou “osso do tabaco”, um tubo em forma de L feito de dois ossos da perna do mutum, uma ave terrestre de caça do tamanho de um faisão, com penas pretas sedosas e um bico vermelho vivo em forma de gancho. Os ossos são fixados com uma resina marrom pegajosa e voltas de algodão fiado à mão. Depois segue-se uma conversa breve, porém animada, em que os dois homens decidem quem será o primeiro – ou seja, quem começará na ponta receptora do seritonki.

“Você primeiro!”, diz o dono do tabaco.

“Não, você primeiro!”, diz o outro homem. “Seu tabaco dói demais! Nunca vou me acostumar com ele.”

“Você primeiro!”, insiste o dono do tabaco.

É como ver dois senhores brigando para ver quem segura a porta.

O kit de seri. Foto de Glenn H. Shepard Jr.

“Tudo bem, eu vou, mas só duas narinas cheias”, o segundo homem concorda. Ele esfrega o nariz e coça a cabeça em antecipação.

O homem que está segurando a concha mergulha o cano do osso de tabaco no pó várias vezes – finas marcas de hachuras ou estrias circulares distinguem a ponta da narina da ponta lisa usada para soprar –, raspando uma dose considerável. Em seguida, ele bate a extremidade mais distante do osso na borda da concha, primeiro de um lado e depois com as costas na borda oposta. A concha toca como um sino de prata: Ting-ting-ting-ting-ting! Ting-ting-ting-ting!

O som de campainha do osso na concha é a marca auditiva registrada da sessão de rapé, um som com poderes pavlovianos para evocar um desejo não tanto pela substância em si, mas pelo encontro ritualizado que envolve seu consumo. Alguns homens tocam a concha com uma intensidade virtuosa, anunciando a todos os ouvidos que estão ao alcance que o tabaco está sendo consumido; mas a batida também tem uma função prática, fazendo com que o rapé se assente na junção que conecta os dois ossos.

Aquele que está segurando o osso de tabaco se inclina para frente, aproximando a extremidade estriada do rosto de seu companheiro. O homem que está prestes a receber o tabaco fecha os olhos com força, franze o nariz, prende a respiração e guia a ponta marcada do osso até uma narina. O primeiro homem então franze os lábios e sopra a ponta não marcada em rajadas curtas para baforar a dose de rapé primeiro em uma das narinas de seu amigo, depois na seguinte, para frente e para trás numa sequência rápida, enquanto seu companheiro inclina a cabeça ligeiramente de um lado para o outro para receber o tabaco.

Assim como acontece com a batida de concha, cada homem tem seu próprio estilo de entregar e receber o rapé: alguns exalam com força em grunhidos curtos, enquanto outros sopram longas e sólidas baforadas e outros, ainda, sopram suavemente. Alguns dos que recebem o rapé dão algumas batidas em uma narina antes de mudar, enquanto outros vão e voltam rapidamente e alguns fazem uma pausa deliberada para piscar entre as narinas cheias. Alguns se inclinam, outros fazem caretas, outros acenam com a cabeça, outros se balançam. A pessoa que sopra continua soprando para frente e para trás entre as narinas até ficar sem fôlego e se assegurar de que todo o restante do rapé no tubo seja enterrado profundamente nos seios nasais de seu companheiro.

Quando a primeira dose (o que os Matsigenka chamam de uma única “narina cheia” – panakitero – embora, na verdade, sejam várias) se completa, a pessoa que recebe se afasta do osso do tabaco – às vezes fazendo caretas e bufando, às vezes espirrando e esfregando a cabeça, às vezes enxugando as lágrimas e chorando enquanto a nicotina queima e pica suas membranas mucosas. E, no entanto, apesar da dor, raramente ou nunca ele se afasta após as prometidas “duas narinas cheias”: a etiqueta Matsigenka é repleta de sutis relutâncias, autodepreciação e eufemismos.

Concha cheia de rapé. Foto de Glenn H. Shepard Jr.

Eles repetem o ciclo várias vezes, pegando o rapé, tocando o osso na concha, dando as rajadas de tabaco, até que a pessoa que recebe finalmente choraminga: “intaga!”, chega. E então os dois trocam de papéis, o homem que está segurando o osso de tabaco vira o tubo para si mesmo e vai enchendo as doses de rapé enquanto o outro homem assoa o nariz.

Em pouco tempo, os dois estão quase prostrados pela intoxicação por nicotina, com olhos lacrimejantes, expressão desleixada, palmas das mãos suadas, um andar cambaleante (se é que conseguem andar) e narinas escorrendo copiosamente com um muco verde brilhante carregado de rapé.

Não é uma visão bonita. Mas estar nesse estado – ter sentido a expectativa vertiginosa, ouvido o toque sedutor do osso, recebido as rajadas fortes e íntimas, sentido a queimação – e ficar deitado, cambaleando depois da adrenalina de curta duração, é indescritível: eufórico, transcendente, divino. O melhor de tudo é que, quando a breve prostração passa, a pessoa se levanta com uma leveza e agilidade revigorantes no corpo e na mente, totalmente livre da exaustão e da frustração de qualquer trabalho anterior. Acho que essa é a razão pela qual os homens Matsigenka retornam tão diligentemente às suas conchas de pompori noite após noite: para varrer o cansaço de suas vidas físicas difíceis.

Katsi seri: rapé doloroso. Foto de Glenn H. Shepard Jr.

Depois de minha própria iniciação dolorosa – e depois de aprender a avaliar minha tolerância e (na maioria das vezes) evitar overdoses desagradáveis – também passei a desejar o rapé de tabaco como uma forma de eliminar o cansaço físico e mental depois de dias longos, quentes e cansativos de prensar plantas, transportar suprimentos, caminhar com caçadores, gravar entrevistas e espantar mosquitos.

Mas os homens Matsigenka não consideram o compartilhamento do tabaco algo leviano. O tabaco de um homem é uma manifestação concreta de seus poderes espirituais e a partilha do tabaco implica o compartilhamento ou a transferência desses poderes. Na verdade, a palavra para xamã na língua Matsigenka é seripigari, literalmente, “aquele intoxicado pelo tabaco”. Os Matsigenka são prudentes a ponto de se autodepreciarem com relação a essas questões: nenhum xamã que se preze jamais afirmaria abertamente ser um. Em vez disso, aqueles que se gabam de seus poderes xamânicos são tacitamente considerados feiticeiros, que usam os poderes espirituais para fins egoístas e malignos. Os xamãs mais poderosos (assim como os melhores caçadores) geralmente são os que negam com mais veemência qualquer proeza desse tipo: o universo Matsigenka é uma delicada tapeçaria de reticências, nuances e insinuações. E, no entanto, qualquer pessoa que consuma regularmente tabaco e outras plantas psicoativas – especialmente a ayahuasca, uma bebida que descreverei mais adiante – é, por definição, um xamã, já que a intoxicação por nicotina é sinônimo de transe xamânico.

O TABACO DE UM HOMEM É UMA MANIFESTAÇÃO CONCRETA DE SEUS PODERES ESPIRITUAIS E A PARTILHA DO TABACO IMPLICA O COMPARTILHAMENTO OU A TRANSFERÊNCIA DESSES PODERES.

O xamanismo, ao que parece, é mais uma questão de grau do que de espécie e, embora ninguém, exceto os mais inseguros ou ineptos, admita isso abertamente, todos os envolvidos no compartilhamento de tabaco e ayahuasca estão escalando os degraus da iniciação xamânica. Nem mesmo o céu é o limite: os maiores xamãs ascendem além dos céus para se misturar com seres espirituais imortais, os próprios deuses da criação que defendem e perpetuam o universo por meio de sua guerra incessante contra as forças do caos e do mal.

Como uma substância material que armazena e transmite poder espiritual, o tabaco é a alma do xamã. E quanto mais “doloroso” ou “pungente” (katsi) for o tabaco, mais poderoso será o xamã. A dependência da nicotina, uma realidade fisiológica, também tem um componente espiritual: os Matsigenka dizem que o guia espiritual xamânico de um homem deseja o tabaco da mesma forma que um beija-flor deseja o néctar.

Os xamãs Matsigenka usam várias plantas medicinais e psicoativas para melhorar a pontaria ao caçar animais de caça e negociar com seus “donos” espirituais. O homem retratado aqui está carregando um queixada de lábios brancos, também conhecido como javelina ou porco-do-mato. Foto de Glenn H. Shepard Jr.

Assim, minha iniciação no rapé de tabaco também foi uma iniciação no reino profundo e sutil do xamanismo. Passei, como diz o jargão, de um observador participante para um participante observador. Logo fui convidado regularmente para tomar rapé, pelo menos com alguns homens. Por fim, adquiri meu próprio kit completo de tabaco – concha de pompori, osso de tabaco e bolsa de redinha (tsagi), à qual acrescentei um maço de papel higiênico enrolado para um descarte mais civilizado do inevitável muco verde. Me tornei até mesmo um conhecedor das variações sutis e intrigantes entre os lotes de rapé de diferentes homens.

Por exemplo, o Machipango, meu “cunhado” adotivo, prepara o rapé definitivamente mais virulento que já experimentei. Forte e potente, ele já me fez vomitar com apenas uma ou duas baforadas. Ele e seus filhos consomem doses heroicas do produto e têm um orgulho silencioso de sua reputação assustadora entre a elite do tabaco.

Alguns fabricantes de rapé produzem misturas mais perfumadas, que podem ser mais ou menos cáusticas, mais ou menos afiadas e intoxicantes quando consumidas. Certa vez, o octogenário Ahuanari compartilhou comigo uma mistura excepcionalmente perfumada e suave. Ela não me deu o efeito normal da nicotina, mas imprimiu um cheiro nauseante e adocicado em meu nariz, o equivalente olfativo de cerejas maraschino (odeio cerejas maraschino) e me deixou enjoado por horas. Nunca mais voltei para comprar mais.

O velho e malandro Oyeyoyeyo, que sua alma de xamã se eleve por toda a eternidade, produzia o melhor rapé de todos: perfumado de forma consistente, forte, penetrantemente limpo e fortemente eufórico, como uma pimenta malagueta divina e rara das terras altas do México. Ele teve uma vida longa e vigorosa, mas recentemente desapareceu na infinita noite estrelada dos xamãs imortais. Como sinto falta de Oyeyoyeyo e de minhas peregrinações à sua casa para fazer escambo de seri

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A tradição atribui essas variações de potência, caráter e principalmente de dor à força espiritual do homem que preparou o rapé. Estou convencido de que isso é bem fundamentado, mas também suspeito que variações sutis nas matérias-primas e no estilo de preparação podem ser representantes físicos desses imponderáveis espirituais.

O tabaco é considerado um domínio quase exclusivamente masculino. Os homens preparam o rapé a partir de folhas verdes e frescas de tabaco colhidas de plantas vivas. Eu vi e colecionei duas variedades, uma com flores brancas e outra com flores vermelhas. Ambas pertencem à espécie botânica cultivada Nicotiana tabacum. Ouvi menção de uma variedade com flores amarelas nas proximidades, que suspeito ser a Nicotiana rustica selvagem.

Os Matsigenka não fazem plantações de tabaco em larga escala; se o fizessem, vermes e outras pragas devorariam rapidamente as plantações. Na verdade, eles têm dificuldade em manter as pragas longe até mesmo de suas modestas hortas, que consistem em algumas touceiras espalhadas pela clareira arenosa ao lado de casa. Entre as pragas abundantes e o consumo prolífico de rapé por seus guardiões humanos, o tabaco é muito procurado e escasso na maior parte do tempo.

Depois de colhidas, as folhas verdes se secam sobre um fogo ardente em um suporte feito de fibras de árvores frouxamente trançadas em uma estrutura circular que lembra – incongruente nas terras baixas da Amazônia – uma raquete de neve. As folhas crocantes são então amassadas à mão em um pequeno pote de cerâmica preta usado especialmente para esse fim e, em seguida, moídas pacientemente com um pilão de madeira até virar um pó verde fino. A pessoa que prepara peneira o pó em um pano limpo e, por fim, o mistura com as cinzas obtidas da queima da casca de uma espécie de árvore extremamente rara conhecida simplesmente como seritaki, a casca do tabaco.

Meu colega biólogo Douglas Yu coletou um comprovante botânico e, por fim, o identificamos como pertencente a uma família obscura de árvores, a Lepidobotriaceae, distantemente relacionada à erva de sabor azedo conhecida como “azedinha” (oxalis). Nossa coleção foi o primeiro exemplar desse grupo botânico encontrado no Peru, já que a família era conhecida anteriormente apenas na África e na América Central. O motivo pelo qual os Matigenka usam essa árvore incomum, entre as milhares de espécies disponíveis em seu exuberante ambiente de floresta tropical, é um mistério para mim; talvez o ácido oxálico (também presente na azedinha) esteja envolvido?

Quando a casca dessa árvore não está disponível, vários substitutos podem ser usados para preparar o rapé de tabaco, incluindo a Sloanea com aroma de amêndoa e a perfumada Bignoniaceae lianas, embora sejam consideradas inferiores.

A palavra para xamã na língua Matsigenka é seripigari, literalmente, “aquele intoxicado pelo tabaco”. Foto de Glenn H. Shepard Jr.

A cinza de árvore peneirada é armazenada em uma concha de pompori própria. O homem que está preparando o rapé de tabaco joga a cinza embranquecida no pote de barro que contém o pó de tabaco recém-moído. Ele adiciona as cinzas gradualmente, misturando e moendo com um pilão e verificando constantemente a cor da mistura com as pontas dos dedos umedecidas com saliva. Muito pó de tabaco – muito “azul” no jargão Matsigenka (o idioma deles, paradoxalmente em um clima tão exuberante e frondoso, não tem uma palavra única para “verde”) – produz um rapé empoeirado e ineficaz; muita cinza (muito “branco”) queima como soda cáustica.

Quando ele está satisfeito com a consistência e a cor – normalmente um rico pó de tons pálidos – ele raspa o rapé do pote de barro com um segundo pompori. A raspagem circular da borda da concha na argila preta arenosa produz uma ressonância distinta e oca que dá água na boca (e no nariz) de um entusiasta do seri. Ele testa o lote imediatamente em uma vítima ansiosa: o rapé de tabaco fresco é o mais forte e mais doloroso de todos.

E foi assim que acabei cometendo e pagando caro por uma falha flagrante, embora não irreparável, durante minha própria luta infantil nos degraus mais baixos da escada xamânica. Isso aconteceu com ninguém menos que Abanti, um homem enigmático de um assentamento distante que mais tarde se revelou o mais importante xamã-curandeiro do rio Manú.

Depois daquela iniciação memorável, ainda que excessivamente indulgente, com Shumarapage, meu gosto amadurecido pela pungência me levou a trocar tabaco com muitos homens em muitas ocasiões. E ainda assim, quando pedi a Abanti que me vendesse tabaco, ele hesitou.

Sim, eu já havia encontrado alguns vendedores relutantes antes; ou eles não tinham planos de preparar tabaco tão cedo, ou tinham tão pouco que não queriam vender. Nesses casos, eles simplesmente respondiam: “meu tabaco acabou! Já tirei todas as plantas” ou “meu pompori está quase vazio”. Mas dessa vez foi diferente. Abanti parecia estar me avaliando como se não tivesse certeza de que eu era digno.

Por fim, ele disse: “meu tabaco é muito caro”.

“Muito caro?” perguntei.

“Vou pensar”, disse ele, “e lhe conto depois”.

Parecia claro que Abanti estava relutante em me vender tabaco por algum motivo. Eu não o conhecia muito bem naquela época, e ele sempre foi um pouco relutante em falar comigo sobre plantas medicinais ou outras práticas de cura, sempre se referindo a algum ancião, presumivelmente uma pessoa mais experiente. Portanto, não o pressionei e achei que encontraria outra pessoa para negociar. Porém, alguns dias depois, Abanti apareceu em frente à cavernosa casa de palha de palmeira que havia sido uma escola e agora era meu acampamento temporário.

Ele estava lá porque o Padre Pascual, um sacerdote católico que vivia em uma cidade missionária a cerca de cinco dias rio abaixo em uma canoa motorizada, tinha acabado de chegar em um barco carregado com caixas de papelão encharcadas e sacos de serapilheira cheios de roupas, sal, facões e linha de pesca. Abanti e dezenas de outras pessoas de vilarejos muito dispersos tinham vindo para examinar os produtos do Padre e assistir ao sermão planejado para o final daquela tarde. O Padre não falava Matsigenka e a maioria dos aldeões entendia pouco ou quase nada de espanhol, mas os sacos de mercadorias comerciais eram um bom catalisador para a comunicação teológica.

“Eu fiz tabaco para você”, disse Abanti.

“É mesmo?”, fiquei surpreso.

“Sim. Você precisa experimentar.”

“Agora mesmo?” Eu me virei para olhar a uns dez metros de distância, em direção aos degraus de concreto da nova escola de madeira com telhado de zinco, onde o Padre estava cercado por aldeões esfarrapados que olhavam enquanto seus estoques eram carregados do porto.

O Padre era um recém-chegado da Espanha, um verdadeiro durão, e eu já havia sido avisado sobre suas suspeitas em relação ao meu trabalho antropológico. Ao contrário de seu antecessor, que havia morado na região por décadas e que eu conhecia bem, tendo até feito amizade, o Padre Pascual criticava abertamente os americanos, os cientistas e os entusiastas da alfabetização bilíngue (aqueles que achavam que a língua indígena deveria ser ensinada primeiro na escola e depois o espanhol). Eu era todos os três. Ele olhou em minha direção com uma carranca.

“Posso passar em sua casa depois da missa”, sugeri a Abanti.

“Agora”, disse ele.

“Vamos entrar.” Abaixei-me na sombra fresca de minha casa emprestada. Embora eu tivesse pouca esperança ou mesmo desejo de superar as opiniões negativas do Padre sobre minha pesquisa, ainda não achava que seria sensato submetê-lo, entre todas as pessoas, ao espetáculo de baforadas, chiados e catarro verde que viria a seguir. Eu já podia ouvir os rumores sobre um gringo maluco que cheirava drogas para ficar chapado. Sentei-me na parte de trás, verificando se o Padre não poderia nos ver por cima (ou através) da meia parede de ripas de palmeiras que circundava o prédio.

Os xamãs de toda a Amazônia continuaram com suas práticas apesar da perseguição dos missionários cristãos. Entre o povo Baniwa do Brasil, o kit do xamã mostra uma mistura de influências religiosas e pode incluir um inalador de rapé de osso de águia, dentes de onça, um frasco de vidro para rapé de Virola, um chocalho, ervas mágicas e um medalhão da Virgem Maria. Foto de Glenn H. Shepard Jr.

E assim, a menos de quinze metros de um inimigo excepcionalmente xenófobo e declarado do paganismo, Abanti mergulhou um osso de mutum em uma concha branca gigante, inseriu-o em meu nariz e começou a soprar um narcótico tabaco verde em meus seios nasais.

Esqueci-me completamente do Padre: era o melhor tabaco que eu já havia experimentado.

Eu nunca havia entendido a metáfora Matsigenka de que o xamã ingeria tabaco como um beija-flor sugando flores, considerando o quão pungente e doloroso ele geralmente era. Mas agora fazia todo o sentido: o rapé de Abanti era doce, exuberante e arrebatador, como um néctar divino. Eu não conseguia me fartar e perdi a conta de quantas doses ele me deu.

Parei por prudência, não por necessidade, lembrando-me da missa iminente do Padre. Sem fôlego e tonto, sem realmente pensar no que estava dizendo, deixei escapar: “pocha!” – que significa “doce”.

Abanti franziu a testa e olhou para mim incrédulo.

“’Doce?”

“Sim, seu tabaco é delicioso! Realmente perfumado. Muito doce, como o beija-flor saboreando o néctar!”

Abanti ignorou a metáfora xamânica e perguntou: “Você está dizendo que meu tabaco não é katsi?”

Nesse momento, percebi que estava em sérios apuros e comecei a recuar furiosamente. “O que quero dizer é que não é que seu tabaco seja realmente ‘doce’ ao paladar, é apenas que ele é muito forte, mas também muito bom. É intoxicante, mas não queima meu nariz. Não me canso dele, então posso tomar mais e ficar realmente intoxicado. É muito bom!”

Abanti juntou o kit de tabaco e se levantou para sair.

“Seu tabaco?” Perguntei pateticamente, ainda esperando fechar o negócio. Nem sequer havíamos negociado um preço.

“Eu entregarei para você na quinta-feira, na casa do Shantanta.” Seu irmão mais novo, Shantanta, havia convidado a mim e a vários outros para tomar ayahuasca no final daquela semana. Abanti aparentemente também estava indo.

Não me lembro do que mais eu disse a ele enquanto estava ali sentado em consternação. Ele me deixou sozinho e se juntou aos outros que haviam se aglomerado em volta dos sacos e caixas do Padre. Eu podia chutar a mim mesmo: a gafe era tão óbvia em retrospectiva. Eu deveria saber que não deveria insultar o tabaco dele como “doce” quando o que era valorizado era justamente a dor. Pelo menos ele não ficou ofendido o suficiente para desistir do negócio do tabaco. Ninguém mais parecia ter tabaco para vender, mas a quinta-feira chegaria em breve.

Mal sabia eu o que me aguardava.

Os dias seguintes foram uma enxurrada de missas, batismos coletivos, reuniões comunitárias e trocas frenéticas entre o Padre e os membros da comunidade, “o preço de cada alma”, como um missionário franciscano do século XVIII observou certa vez, “sendo um machado de Biscaya”. Não havia muito sentido em continuar minha própria pesquisa com a atenção da comunidade assim distraída, então passei o tempo limpando e organizando meu acampamento.

Depois o Padre foi embora e a aldeia voltou ao seu ritmo normal. Na quinta-feira, conforme programado, o irmão mais novo de Abanti chegou no final da tarde e me convidou para tomar ayahuasca com ele naquela noite.

“Esquentei a bebida do cipó”, disse ele, usando um dos eufemismos de precaução para ayahuasca que os Matsigenka usam para demonstrar respeito pelo cipó sagrado no dia da cerimônia, evitando seu nome comum. A ayahuasca pode causar crises intensas de vômito e diarreia, purgando a pessoa de impurezas físicas e espirituais.

Os Matsigenka tomam ayahuasca somente durante a estação das chuvas, que vai de novembro a maio. Essa também é a principal estação de caça para a maioria dos animais de caça, especialmente os macacos-lanudos e os macacos-aranha, que têm carne magra e fibrosa durante a estação seca, mas engordam com os abundantes frutos da floresta que amadurecem com as chuvas. Na verdade, os homens Matsigenka tomam ayahuasca especificamente para melhorar suas habilidades de caça, literalmente “para ter boa pontaria” (nokovintsatira). Muitas vezes ouvi homens dizerem: “eu bebo ayahuasca, saio para caçar no dia seguinte e trago para casa dois macacos-aranha”.

Ao mesmo tempo, a ayahuasca coloca os homens em contato direto com seres espirituais conhecidos como saangariitas (“os invisíveis, puros”), que controlam o acesso a poderes sobrenaturais e a recursos naturais. Dessa forma, os Matsigenka são como muitas outras tribos, inclusive a nossa; as associações entre xamanismo e caça parecem ser quase tão antigas quanto a espécie humana, conforme evidenciado na arte rupestre antiga em todo o mundo.

No entanto, evitar a ayahuasca durante a estação seca vai além da caça. A estação seca é a estação da agricultura, quando os homens fazem pequenas hortas na floresta e queimam as árvores caídas para produzir cinzas fertilizantes – a jardinagem de roça mencionada anteriormente. Os espíritos saangariítas também plantam suas próprias hortas e, portanto, na estação seca, o mundo espiritual, assim como o mundo humano, fica cheio de fumaça e fogueiras que podem desorientar ou até mesmo matar a alma itinerante de um xamã. As primeiras chuvas apagam esses incêndios e limpam o caminho do xamã para uma viagem segura ao cosmos.

Cheguei para a cerimônia terrena no aglomerado de casas próximas pouco depois do anoitecer, munido de um saco de dormir, um gravador (afinal, tratava-se de observação participante), uma cushma (túnica de algodão) lindamente decorada para usar durante a cerimônia e um rolo de papel higiênico novo: ainda a única armadilha civilizada da qual eu nunca tinha me livrado e que meus amigos Matsigenka também apreciavam. Seis ou sete homens do mesmo povoado já haviam vestido suas cushmas e se reunido, sentados em esteiras de cana espalhadas pela praça de areia. Alguns conversavam em voz baixa, outros faziam rodadas preparatórias de rapé de tabaco, outros relaxavam em silêncio. O último brilho da luz do dia se dissipou e nuvens escuras se aproximaram, deixando um vago e nebuloso mosaico de estrelas. Parecia que estava chovendo. Abanti ainda não estava lá.

Shantanta ficava me perguntando que horas eram. “Esse ‘sol’ que você me deu está quebrado.” Ele ergueu os restos maltratados e sem alças de um infeliz Casio pendurado em seu pescoço como um talismã, uma relíquia de uma troca de tabaco ocorrida alguns anos antes. Entendi a dica: meu preço para participar da cerimônia seria um novo relógio de pulso digital ou, se eu realmente quisesse uma pechincha, um conserto do antigo.

OS HOMENS MATSIGENKA SEMPRE ESPERAM PRODUTOS COMERCIAIS EM TROCA DO TABACO E DO PRIVILÉGIO DE PARTICIPAR DE UMA CERIMÔNIA DE AYAHUASCA, ATÉ MESMO ENTRE SI; O PREÇO DE VENDA (PELO MENOS PARA OS GRINGOS) É UM RELÓGIO DE PULSO CASIO.

Como etnógrafo novato, fiquei inicialmente desanimado com o fascínio dos Matsigenka pela tecnologia digital. Mas, com o tempo, passei a ver o desejo quase fetichista deles por relógios de pulso à prova d’água como uma imagem espelhada do meu próprio fascínio por suas substâncias e parafernálias xamanísticas. A simetria dessa relação entre tecnologias justapostas é reforçada pela estrutura de preços: os homens Matsigenka sempre esperam produtos comerciais em troca do tabaco e do privilégio de participar de uma cerimônia de ayahuasca, até mesmo entre si; o preço de venda (pelo menos para os gringos) é um relógio de pulso Casio.

As mulheres xamãs-curandeiras são um tanto raras entre os Matsigenka nos dias atuais, talvez devido ao conflito com a sociedade patriarcal peruana. No passado, as mulheres xamãs eram mais comuns. Atualmente, as mulheres não participam com frequência de rituais que envolvem rapé ou ayahuasca. Foto de Glenn H. Shepard Jr.

Já passava das oito horas e Abanti ainda não havia chegado. Sua casa ficava a quase uma hora de caminhada, por caminhos na floresta que seriam tão escuros quanto um túnel subterrâneo em uma noite nublada como aquela. Finalmente, Shantanta desistiu de esperar. Ele ordenou que suas duas esposas e várias irmãs e sobrinhas de todo o vilarejo jogassem água em todas as lareiras. Qualquer forma de iluminação artificial – uma lanterna, uma vela, um fósforo, a mais leve faísca de uma brasa fumegante, até mesmo o brilho da luz de fundo de um relógio digital – pode ser mortalmente perigosa durante a sessão de ayahuasca, queimando a alma elevada do xamã.

A cerimônia estava prestes a começar.

“Onde está seu irmão?”, perguntei. “Ele não vem?”

“Ele vai chegar mais tarde”, disse Shantanta, “mas temos que começar agora ou ainda vamos estar bebendo ao amanhecer”. Os Matsigenka sempre consomem a ayahuasca fresca e geralmente terminam uma dose na noite do mesmo dia em que foi preparada. Dependendo da quantidade de bebida e do número de convidados, a sessão pode terminar antes da meia-noite ou continuar até quase o amanhecer. Somente quando o dia amanhece é que os restos da bebida são armazenados para outra ocasião, mas isso raramente acontece. Shantanta esperava que essa fosse uma noite longa.

Como de costume, os homens se reuniram ao seu redor em suas esteiras enquanto ele indicava onde cada um deveria se sentar, formando um semicírculo solto. Todos nós estávamos voltados para o leste, obedecendo a uma entre várias regras cerimoniais tácitas: não falar demais, especialmente na parte inicial do ritual, não peidar (mas arrotar profunda e vigorosamente para aliviar a náusea é permitido – na verdade, desenvolvido até se tornar uma arte); quem estiver prestes a vomitar deve chamar a panela grande, reservada especialmente para esse fim, para não derramar as impurezas purgadas no chão (a soma coletiva do vômito é enterrada na manhã seguinte); e o mais importante, nenhuma iluminação artificial até que o líder da sessão declare que ela terminou.

Shantanta abriu a cerimônia, chamando cada pessoa pelo nome em uma fórmula ritual simples, mas invariável.

“Nee”, disse ele (literalmente, ‘olhe’, ou seja, ‘aqui está’), sempre que passava uma cabaça minúscula com uma pequena quantidade de líquido para um convidado, um por um, em sequência ao redor do círculo.

O convidado pergunta em resposta: “iro pishavogaa?” (“isso é o que você esquentou?”) e, em seguida, engole o conteúdo intensamente amargo em alguns goles. Ele devolve a cabaça e recebe vários refis, finalmente declarando: “intaga” , “chega”.

O líder da sessão serve cada convidado dessa forma ao redor do círculo e, por fim, ele mesmo. Ele coloca a cabaça de volta na panela, cobre-a com uma folha de bananeira e espera. Depois de um intervalo de dez ou quinze minutos, ele repete a cerimônia, sempre seguindo a mesma ordem entre os convidados, várias vezes durante a noite, até que todo o lote esteja pronto. Ser o convidado que termina a bebida é uma honra especial para aquela sessão. Dependendo do número de convidados e do tamanho do lote, cada participante pode consumir até meio litro da bebida poderosamente psicoativa ao longo de uma noite. O resultado é uma crescente gradual de transe alucinógeno que atinge um nível mais alto a cada rodada e se dissipa gradualmente cerca de quatro horas após o último copo ser servido.

Nessa noite, as visões começaram para mim com velocidade e clareza incomuns. Eu estava flutuando em um caminho exuberante e artisticamente iluminado pela floresta, observando a beleza de cada erva, videira, árvore e fruta. Uma presença invisível e estranha estava me transmitindo informações esotéricas sobre as propriedades curativas e espirituais de cada planta. Ouvi uma voz cantando uma melodia simples, mas sublime, de palavras em um idioma enigmático que parecia vagamente maia. Tentei acompanhar o cântico com minha própria voz. Parecia que grandes mistérios estavam prestes a ser revelados, poderes ocultos transmitidos.

EU ESTAVA FLUTUANDO EM UM CAMINHO EXUBERANTE E ARTISTICAMENTE ILUMINADO PELA FLORESTA, OBSERVANDO A BELEZA DE CADA ERVA, VIDEIRA, ÁRVORE E FRUTA.

Porém, à medida que a sessão continuava e eu bebia dose após dose, cada uma mais amarga que a anterior, a cintilação inicial de mistério e euforia foi lavada por uma onda crescente de náusea que invadiu todo o meu corpo. Mudei de posição, passando de sentado para deitado de lado, deitado de costas e me esticando no estilo ioga, na esperança de encontrar algum arranjo que trouxesse alívio. Minhas palmas estavam úmidas, estremeci com o rastro amargo da bebida em minha garganta, minha bexiga estava irritada, mas eu não ousava ficar de pé. O desconforto físico implacável transformou-se em uma repulsa total e existencial. Nuvens negras obliteravam a fraca luz das estrelas e eu estava cercado por uma escuridão profunda e ameaçadora. Os companheiros que supostamente estavam por perto agora pareciam inimaginavelmente remotos, mas seus sussurros e murmúrios ocasionais me lembravam de sua proximidade incongruente, o que só me deixava mais confuso e nauseado. As visões claras e coloridas dos primeiros momentos da sessão haviam desaparecido, e eu havia entrado em um plano de perplexidade euclidiana, cognição distorcida e pavor corrosivo.

A CINTILAÇÃO INICIAL DE MISTÉRIO E EUFORIA FOI LAVADA POR UMA ONDA CRESCENTE DE NÁUSEA QUE INVADIU TODO O MEU CORPO.

Depois de um longo tempo, ouvi cães latindo. Uma saraivada distante, passos desajeitados se aproximando, o arrastar de corpos em esteiras. Alguém disse em um tom abafado: “é ele”.

Abanti havia chegado.

Ele cumprimentou vários de seus parentes pelo nome e abriu caminho entre os corpos prostrados e intoxicados na escuridão total, finalmente tomando seu lugar no centro do grupo ao lado de seu irmão mais novo, Shantanta. Ele explicou que tinha ouvido um par de tinamou (pássaros da floresta parecidos com perdizes) chamando perto de sua casa ao pôr do sol e começou a descrever a cena com detalhes vívidos e evocativos, ricos em onomatopeias e vocabulário específico de caça. Ele partiu com suas flechas, chamando os pássaros e ouvindo sua resposta, e se arrastou suavemente na direção deles pela floresta escura. Ele viu uma silhueta empoleirada contra o brilho tênue do céu, atirou uma flecha, mas errou. Os dois pássaros se afastaram com asas nervosas, chamando novamente de uma árvore distante. Ele recuperou a flecha gasta e os seguiu novamente até onde achava que deveriam estar, mas eles gritaram de outra direção. Ele tentou chamar novamente, mas os pássaros estavam cautelosos e evasivos. Por fim, desistiu da caçada, percebendo que já estava na hora de ir para a casa do irmão para a cerimônia. Mas as pilhas de sua lanterna estavam fracas e, no meio do caminho, haviam se esgotado. Ele descreveu o caminho curva por curva, como tropeçou em troncos caídos e rastejou no escuro por trechos difíceis onde o mato bloqueava o caminho. Ele não ousou dizer a palavra no meio de uma cerimônia em andamento, mas ficou claro que ele estava preocupado com cobras.

Cada nuance em sua voz e cada detalhe de sua história foram ampliados pelo profundo transe da ayahuasca, e a história de Abanti assumiu proporções míticas: uma parábola eterna do caçador desobediente que perdeu suas habilidades, foi abandonado por seus espíritos guardiões e se perdeu na natureza. Ele continuou sua narrativa diante de um público extasiado, descrevendo seus sofrimentos na floresta escura até o momento em que ouviu cães latindo ao longe, percebeu que estava perto da casa de Shantanta e finalmente emergiu das sombras.

A conclusão, embora não dita, era evidente: ele tinha vindo beber ayahuasca para renovar seu contato místico com os espíritos caprichosos da floresta e recuperar seu prestígio como caçador e xamã.

Os caçadores Matsigenka usam a ayahuasca e outras plantas purgativas, psicoativas e eméticas para melhorar sua pontaria e seu relacionamento espiritual com os espíritos dos animais de caça. Foto de Glenn H. Shepard Jr.

Quando ele terminou sua história, eu me dissolvi na escuridão envolvente.

Algum tempo depois, ouvi Shantanta dizer o convite padrão para beber: “Nee! Aqui está”. Sua voz pairava, como se viesse de vários lugares ao mesmo tempo, e achei que era dirigida a mim.

Sentei-me e estendi a mão através das sombras na direção de sua voz, dizendo: “onde está a cabaça?”

“Você não!”, disse Shantanta enquanto uma risada suave se espalhava pelo grupo. “Esta é para o Abanti.”

Ouvi Abanti engolir o líquido e depois cuspir com um som sinistro de assobio, dissipando o gosto amargo ou alguma presença sobrenatural que se aproximava. Me perdi em meditações bizantinas e me deitei novamente.

Após outro longo silêncio, ouvi Shantanta suplicar perto de mim: “Nee!”.

Mais uma vez me sentei e procurei a cabaça no escuro. Alguém deu uma risadinha.

“Você de novo!”, advertiu Shantanta. “Isso não é para você, é para o Abanti!”

Abanti começou a engolir e eu me deitei e fui embora. Depois do que pareceu ser outro intervalo infinito, mas que pode ter sido apenas uma questão de segundos, ouvi a voz de Shantanta perto de mim, novamente oferecendo a cabaça. Essa, eu tinha certeza, era minha. Então, pela terceira vez, me sentei, estendi minha mão e pedi a cabaça.

Meus companheiros sombrios riram novamente, mais alto desta vez, e alguém zombou: “o que ele pensa que está fazendo?”

Shantanta ecoou consternado: “o que você está fazendo? Não é você! Isso é para o Abanti!”

Me senti envergonhado, como se tivesse sido atravessado por mil olhares de desaprovação, e caí em um caos de verdes, vermelhos e marrons rodopiantes. Perdi toda a noção do tempo.

Eras depois de estar penetrando nesse vazio como uma tábua de salvação, veio a voz de Abanti me chamando.

Me levantei, grogue, e tentei me orientar. O céu estava negro, com um horizonte ainda mais negro. “O que é isso?”

“Eu trouxe o tabaco”, disse ele. “Venha cá.”

Rastejei, abrindo caminho entre corpos desajeitados em direção à sua voz. “Aqui?” perguntei, enquanto estendia a mão e sentia a bainha de uma túnica de algodão.

“Não”, respondeu uma sombra, e uma mão sem corpo me guiou para um lado. “Abanti está aqui.”

Por fim, me levantei e sentei com as pernas cruzadas em frente à forma sombria de Abanti, enquanto ele mexia em sua bolsa de redinha. Eu o ouvi mais do que o vi tirar a concha de caracol e começar a servir uma dose de rapé, o arranhar do tubo de osso contra a parede de porcelana da concha foi silenciado pelo conteúdo abundante do pó.

“Quem é o primeiro?” perguntei.

“Você”, disse ele. “Nee.”

“Onde está?” Procurei o tubo ósseo na escuridão.

“Aqui.”

Encontrei o tubo, senti as estrias que indicavam a extremidade receptora, prendi a respiração e inseri a ponta do osso de tabaco em meu nariz.

Abanti soprou o tabaco com baforadas rápidas e furiosas. O rapé entrou em minhas narinas como uma sequência de explosões de chartreuse que se expandiram para dentro e para cima como uma reação em cadeia. Senti como se meu cérebro tivesse sido iluminado por dentro. Ofeguei com o fogo selvagem que rugiu em meus seios nasais e queimou os nervos profundos do meu rosto. Era mais do que dor, era sofrimento. Ele estava me punindo, não havia dúvida, mas a dor que ele infligia, embora intencional, não era cruel nem gratuita. Era uma iniciação, um rito de passagem: ele estava me ensinando uma lição.

ELE ESTAVA ME PUNINDO, NÃO HAVIA DÚVIDA, MAS A DOR QUE ELE INFLIGIA, EMBORA INTENCIONAL, NÃO ERA CRUEL NEM GRATUITA. ERA UMA INICIAÇÃO, UM RITO DE PASSAGEM: ELE ESTAVA ME ENSINANDO UMA LIÇÃO.

A primeira dose foi tomada e Abanti já estava preparando outra. Não havia como recusar. Enquanto ele batia o osso contra a casca, me ocorreu que ele estava convocando alguém, ou alguma coisa.

As rajadas de tabaco em pó entraram em mim mais uma vez. Outra nuvem brilhante de dor verde se expandiu dentro de mim e se voltou contra si mesma, transformando-se em fractais iridescentes que envolveram a nós dois. Não havia como olhar para ela, pois estava em toda parte: um milhão de olhos que não piscavam, a cauda em leque de um pavão, um arco-íris de padrões ondulados de tecido, a plumagem cintilante de um beija-flor.

Percebi pela primeira vez que Abanti, apesar de sua modéstia e ponderação, era de fato um poderoso xamã. A deferência que os outros homens haviam demonstrado a ele naquela noite já era uma pista, mas ele finalmente havia revelado sua maestria para mim. O que ele estava me transmitindo por meio daquele tubo ósseo não era mais uma substância física, era conhecimento, um poder vivo – um sacramento. Alguma parte de Abanti estava entrando em mim.

Ou não era exatamente Abanti, mas um gêmeo silencioso, um doppelgänger xamânico que havia sido transmitido a ele por algum outro mestre. Era parte dele, mas também era mais do que ele. Era antigo e eterno, mas precisava de um hospedeiro humano. Podia conferir percepções práticas e poderes místicos, mas também era caprichoso e provavelmente tinha seus próprios propósitos.

Essa força alienígena invasiva estava se fundindo com meu espírito por meio de um portal aberto pela ayahuasca e consumado pelo tabaco. Parecia que Abanti havia me levado a algum lugar secreto, terrível e sagrado: uma caverna, um altar de sacrifício. A sensação era ao mesmo tempo eufórica e assustadora.

Não sei quantas doses ele me deu. Em algum momento, gemi: “intaga”, e Abanti parou. Lágrimas escorreram pelo meu rosto. Minha respiração veio em soluços. Minhas mãos tremiam, meu rosto ficou frouxo e dormente. Um muco espesso e escuro começou a escorrer dos seios nasais inchados para meus lábios, pescoço e peito.

UM BEIJA-FLOR PARECIA ESTAR BRINCANDO DE ESCONDE-ESCONDE COMIGO. HAVIA ALGO INSUPORTÁVEL NAQUELE SOM, NÃO TANTO AMEAÇADOR, MAS TOTALMENTE INCOMPREENSÍVEL E DESORIENTADOR.

Um zumbido estranho me cercava, às vezes perto, às vezes longe, às vezes na frente ou atrás, de um lado ou de outro. Eu nunca conseguia localizá-lo, muito menos identificar sua origem. Um beija-flor parecia estar brincando de esconde-esconde comigo. Havia algo insuportável naquele som, não tanto ameaçador, mas totalmente incompreensível e desorientador. Eu estava confuso, sem nenhum senso de referência espacial ou temporal. A euforia se esvaiu de mim mais uma vez e, em seu lugar, veio a náusea, subindo como uma maré doentia que se agitava ao ritmo daquele zumbido vertiginoso. Há momentos em que é possível se manter firme e lutar contra a náusea da intoxicação por tabaco ou ayahuasca com força de vontade. Essa não foi uma dessas ocasiões.

“Jiromanka”, eu disse: a panela.

A bebida cozida pronta para tomar. Foto de Glenn H. Shepard Jr.

Em algum lugar da escuridão apareceu uma grande panela de alumínio, o vomitório designado para a sessão. Assim que coloquei minhas mãos nas alças, comecei a vomitar e a vomitar com uma violência singular. Eu não estava apenas perdendo o almoço, como dizem: era como se minha própria alma estivesse se soltando das profundezas de minhas entranhas. Pecados e transgressões há muito tempo esquecidos jorraram como bile, manifestações físicas de uma purgação espiritual. Vomitei, vomitei e vomitei mais um pouco. Não havia mais nada para vomitar e, mesmo assim, eu ainda vomitava, vomitava e gemia em agonia. Eu queria devolver o pote a alguém, colocar as sombras com cheiro forte bem longe, mas temia que saísse mais. E isso aconteceu. Então, agarrei-me às alças gêmeas do pote como se fosse um salva-vidas em um mar tempestuoso. Finalmente, meus vômitos secaram, mas meu abdômen continuou a se contrair em repulsa às toxinas que ainda corriam pelo meu corpo.

Finalmente, eu estava exausto. Tossi os últimos resquícios de minha boca. Minhas mãos tremiam enquanto eu limpava a sujeira, o ranho e as lágrimas do meu rosto na manga do meu cushma; a ideia de procurar papel higiênico era insuportável. Entreguei o pote de volta à escuridão.

Seguindo o costume, eu disse a cada membro do grupo, na mesma ordem em que a bebida havia sido servida, “nokamarankake”: “Eu vomitei”. Como se eles não tivessem notado. E cada um respondeu, educadamente, “ario?”, “é mesmo?”.

Pareciam haver passado horas, até que ouvi a voz de Abanti acenando.

“Nee”, disse ele. Estendi a mão na escuridão e ele me entregou o kit completo de tabaco: concha de caracol totalmente carregada, rolha de tecido e osso em forma de L.

“Katsi pisere?”, perguntou Abanti, sem ironia: ”seu tabaco é doloroso?”

Ele o estava chamando de meu agora. Eu merecia isso.

“Katsi”, sussurrei.

***

Mais tarde naquela noite, a última xícara de ayahuasca caiu sobre mim, dando-me a honra tácita de encerrar a sessão. Se supõe que a ocorrência seja providencial – a própria ayahuasca escolhe –, mas suspeito que Shantanta tenha dosado as doses no final para me dar esse privilégio.

“Pitsoa!”, exclamou ele, como se estivesse surpreso: “você terminou!”.

“Notsoa”, eu disse: “eu terminei”.

E repeti a frase, seguindo o costume, para cada pessoa em sequência, terminando com Abanti.

“Jaroka pikanti!”, ele respondeu: “não me diga!”

Somos amigos desde então.

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Nota

Este artigo foi publicado originalmente em inglês na Broad Street Magazine e posteriormente no Chacruna Institute.

Tradução de Paula Bizzi Junqueira.
Capa de Luana Lourenço.

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