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Os Psicodélicos no Universo Feminino do Partejar

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[…] todos os procedimentos são sagrados se são necessários.

Aqui, especialmente no começo, tudo é questão de sensibilidade. É somente

pela sensibilidade que se chega a alcançar a verdadeira arte […] (KANDINSKY 2015). 

As substâncias psicoativas com propriedades visionárias, nomeadas por alguns pesquisadores como enteógenas, em certo sentido podem ser consideradas ferramentas que aceleram nossa compreensão dos mistérios da mente humana, e são fontes de intensos debates desde a antiguidade, incluindo o universo feminino e a arte do partejar.

As substâncias psicoativas com propriedades visionárias, nomeadas por alguns pesquisadores como enteógenas, em certo sentido podem ser consideradas ferramentas que aceleram nossa compreensão dos mistérios da mente humana, e são fontes de intensos debates desde a antiguidade, incluindo o universo feminino e a arte do partejar. A expressão mente humana, note-se, é entendida aqui de forma mais vasta do que o conhecimento do funcionamento do nosso cérebro, abarcando também o aspecto, por assim dizer, espiritual. Em meados do século XX, tais substâncias foram renomeadas como drogas psicodélicas, tendo como precursores estudiosos como os médicos Albert Hofmann e Stanislav Grof, com pesquisas importantes visando encontrar um uso medicinal para várias doenças psíquicas.

Na medida em que seu uso se tornou popularizado, muitas vezes sem os devidos cuidados, elas entraram no âmbito de drogas perigosas e proibitivas, do ponto de vista de um coletivo que não entendeu o potencial de avanço dessas pesquisas. Algumas dessas substâncias, contudo, nunca deixaram de ser utilizadas por populações originárias e seus descendentes, como é o caso da ayahuasca. Agora, neste início do século XXI, os estudos acadêmicos voltaram o foco de interesse para os psicodélicos, procurando encontrar respostas às nossas angústias emocionais e possíveis fontes terapêuticas. 

No meu caso, a possibilidade da expansão de consciência a partir da utilização da ayahuasca, dentro do sincretismo religioso do Santo Daime, foi o caminho traçado por minha pesquisa desde o ano de 1992, através da experimentação empírica. No estudo da medicina, a psicologia de Carl G. Jung e os fundamentos homeopáticos de Samuel Hahnemann guiavam minha forma de pensar sobre saúde e adoecimento, entendendo assim que doenças podem ter uma origem psicossomática. Ao entrar na via das plantas de poder, senti que meu percurso completava uma mandala. Mandala é uma palavra sânscrita que significa “círculo de proteção”, onde seu conteúdo interno fica preservado, protegido. Desta forma, passei a poder olhar a saúde e os métodos terapêuticos de recuperação da saúde de uma perspectiva circular, como uma totalidade psicofísica-espiritual. 

Nesse sentido, penso que quando permitimos o encontro deste “eu” de superfície com um outro “eu”, desconhecido, interior, mais abrangente, através de um enteógeno, mergulhamos numa viagem às profundezas do nosso ser, e um potencial de memórias ancestrais pode ser acessado. No caso específico, a ancestralidade feminina.

Nesse sentido, penso que quando permitimos o encontro deste “eu” de superfície com um outro “eu”, desconhecido, interior, mais abrangente, através de um enteógeno, mergulhamos numa viagem às profundezas do nosso ser, e um potencial de memórias ancestrais pode ser acessado. No caso específico, a ancestralidade feminina. Ao longo do tempo, a cada ritual, uma linhagem feminina ia sendo desvendada e incorporada ao ser, estar e fazer cotidianos. Linhagem vista aqui como a transmissão de conhecimento através do tempo, de mestre a discípulo, uma concepção bem difundida na cultura oriental, bem como nas tradições xamânicas. Aqui me refiro às mulheres engajadas na arte da cura.

O uso das plantas de poder ativa conexões sinápticas e ilumina áreas do nosso sistema nervoso que estavam inativadas, adormecidas e, se bem conduzido pela consciência, pode ser um poderoso gerador de informações para auxiliar e transformar construtivamente. As imagens acessadas por essas experiências enriquecem nossa compreensão do significado da vida. 

Numa destas viagens extáticas, estava deitada em uma tenda dentro de uma mata fechada, com uma mulher indígena sentada ao meu lado. Ela colocou uma folha bem grande de um arbusto, na região entre o umbigo e o púbis, dentro da folha, um composto de ervas quentes, como se estivesse fazendo um tratamento de moxabustão. No dia seguinte, a menstruação, que estava suspensa há três meses, aconteceu! Esta visão, associada ao evento fisiológico subsequente, clareou a possibilidade de um novo estudo: a medicina tradicional chinesa, o estudo da acupuntura e a consequente ampliação dos conceitos sobre saúde. 

A mente percorre, circula pelo corpo através dos canais de circulação de energia, os chamados meridianos. Cada pensamento manifesta-se, expressa-se no corpo, movimentando a energia vital. A acupuntura atua nos canais, nos meridianos, por onde flui a energia no corpo, ou Chi, como é chamada na medicina tradicional chinesa. A construção de minha prática clínica foi sendo então embasada no conhecimento e na experimentação empírica do uso medicinal da ayahuasca, associada à acupuntura. Nesse sentido, minhas experiências na prática médica sugerem que doses pequenas de ayahuasca podem potencializar os benefícios terapêuticos deste método de cura. 

Como descrevi acima, o processo de autoconhecimento obtido pelo uso das plantas de poder é infinito, tanto quanto o potencial de expansão da mente humana. Vamos desfazendo nós psíquicos e abrindo áreas de observação. E foi assim que cheguei ao universo feminino da arte de partejar. 

Como descrevi acima, o processo de autoconhecimento obtido pelo uso das plantas de poder é infinito, tanto quanto o potencial de expansão da mente humana. Vamos desfazendo nós psíquicos e abrindo áreas de observação. E foi assim que cheguei ao universo feminino da arte de partejar. 

As sábias palavras de Jung introduzem o tema. “Nós não somos os criadores de nossas ideias, mas apenas seus porta-vozes; são elas que nos dão forma […] e cada um de nós carrega a tocha que no fim do caminho outro levará.” (JUNG 1975 p.158). Neste contexto, a tocha carregada é da linhagem feminina das parteiras, que abarcam o ofício tão antigo quanto o ser humano. Mulheres iniciadas nas situações limítrofes da vida. Na sua simplicidade e grandeza, são exemplos de entrega compassiva-devocional, pois trabalhar com o mistério do nascimento exige qualidades especiais. Dentre elas, destaco as linhagens que utilizaram e utilizam bebidas consideradas sagradas. Na região amazônica, as parteiras do Santo Daime seguiram essa tradição.

O nascimento é um processo instintivo e arquetípico que mobiliza a totalidade psíquica e espiritual da mulher. Agregar a esta experiência o chá medicinal é algo que traz inúmeros benefícios. Ele introduz o precursor de um neurotransmissor, a serotonina, que estimula estados emocionais apaziguadores, por ativar áreas do sistema límbico e núcleos hipotalâmicos do sistema nervoso central, o que ajuda muito durante o trabalho de parto, pois a dor é potencializada pelo medo e pela insegurança. 

As parteiras do Santo Daime sabem trabalhar com o chá para aliviar a dor e dar conforto à mulher grávida durante o parto. As doses variam de forma individual, e seu sentimento intuitivo vai definir o que é suficiente para cada etapa do processo. Em geral, todas as pessoas que compõem a equipe de atendimento, incluindo familiares presentes, tomam o chá. Dentro de uma atmosfera dedicada ao sagrado, as parteiras, assim inspiradas, observam todos os movimentos, guiadas através de fios invisíveis no desenrolar dos acontecimentos.

As parteiras do Santo Daime sabem trabalhar com o chá para aliviar a dor e dar conforto à mulher grávida durante o parto. As doses variam de forma individual, e seu sentimento intuitivo vai definir o que é suficiente para cada etapa do processo. Em geral, todas as pessoas que compõem a equipe de atendimento, incluindo familiares presentes, tomam o chá. Dentro de uma atmosfera dedicada ao sagrado, as parteiras, assim inspiradas, observam todos os movimentos, guiadas através de fios invisíveis no desenrolar dos acontecimentos. A aura do mito-mistério acompanha sua mobilidade a cada tempo. Elas sabem que não trabalham separadas de um todo penetrante e reverenciam este saber.

Madrinha Cristina, uma das parteiras mais conhecidas da tradição do Santo Daime. Arquivo CEDOC/ICEFLU.

Todos nós, ao nascermos, não somos uma “tábula rasa”. Temos uma bagagem de conhecimento adquirido em outros percursos já realizado. nossa ancestralidade está presente. Na constituição do chá que ativa a memória ancestral, encontramos duas plantas vindas da floresta amazônica, descobertas pela sabedoria intuitiva dos povos originários. Ayahuasca é a denominação mais conhecida e foi renomeada por populações caboclas da região como Santo Daime. “O rei jagube, como é chamado o cipó, abre passagem para a manifestação da calma contemplativa da folha-rainha.” (NOAL 2015 p.64) 

Desde a formação acadêmica, estive envolvida com o tema das gestantes, dos partos e recém-nascidos, então, de forma natural, direcionei meu interesse ao estudo da atividade destas mulheres; as parteiras tradicionais do Santo Daime. Ao mesmo tempo, trabalhei num site de divulgação e educação de mulheres, no início do movimento do parto humanizado. 

Uma nova consciência está nascendo enquanto a antiga está partindo. No partejar, nasce a mãe e nasce o filho! Nascimentos simultâneos.

Todo trabalho de parto é uma iniciação para a mulher e cada uma pode aproveitar essa oportunidade de aprofundamento interior, na dependência de sua visão de mundo. Esse pequeno espaço de tempo capitaneado pela parte mais antiga, primitiva do cérebro, é vivido numa intensidade total. Desdobrada em imagens, sentimentos, sensações auditivas, visuais, táteis, gustativas. A totalidade do ser! Caminho este que no limite final traz a percepção da morte. Não se morre pela dor, mas sim, se morre para a antiga maneira de ver a vida. Uma nova consciência está nascendo enquanto a antiga está partindo. No partejar, nasce a mãe e nasce o filho! Nascimentos simultâneos (NOAL.2015. p. 80).

Foto da autora. Arquivo pessoal.

Até completar a dilatação, a natureza faz a maior parte do trabalho e, de forma involuntária, ocorre a liberação de ocitocina e todo ambiente biológico se organiza para o trabalho de parto. No período expulsivo, porém, a participação da mulher precisa ser total, para que a apresentação possa descer pela passagem estreita do canal do parto. A transição pelo arcabouço ósseo, seguida pelos esfíncteres em forma de 8 que sustentam o assoalho pélvico. Aqui, onde as luzes se acendem, a hora do elemento fogo, é o chamado empoderamento da mulher (NOAL. 2015. p. 81). 

O corpo treme todo ao receber um ser humano recém nascido das entranhas maternas, como se estivesse num estado de transe. O desabrochar de uma flor, regada com o vinho das almas! Uma grande alegria se espalha no ambiente onde acontece o parto natural, simples e sagrado como é, em essência, nossa vida aqui na terra. Mesmo sem nenhuma crença, o trabalho de parto nos remete a uma instância muito acima da condição humana comum, o ser arquetípico mostra sua face! O tempo cronológico dá lugar ao sem-tempo e sem- espaço. 

A descrição dos estados emocionais e físicos que acompanham o trabalho de parto podem ser vistas como vivências paralelas e sentimentos de dissolução do ego, assemelhadas às experiências com o uso de psicodélicos.

A descrição dos estados emocionais e físicos que acompanham o trabalho de parto e que procuro trazer aqui podem ser vistas como vivências paralelas e sentimentos de dissolução do ego, assemelhadas às experiências com o uso de psicodélicos. O aprofundamento, o voltar-se para dentro e consequente desligamento do meio externo, o abaixamento do nível mental, são as condições que vão permitir a experiência imediata, quer dizer, a religação com nossa interioridade. As referências concretas, cotidianas, nas quais estamos contidos, tornam-se evanescentes. Uma dimensão sutil se apresenta. 

Nas duas situações, tanto no trabalho de parto como nas experiências psicodélicas, o córtex cerebral que comanda a vida consciente, a vida de relação, a nossa racionalidade dá lugar à manifestação de outras áreas mais antigas e anatomicamente mais protegidas do nosso cérebro. Cada viagem extática pode ser sentida e vivida como um trabalho de parto. Morremos e renascemos simbolicamente, levados pelas mãos da natureza. 

Foto da autora. Arquivo pessoal.

A consciência do valor da vida em todas as suas expressões, em todos os reinos é um dos primeiros sentimentos. Desabrocha uma visão ecológica no sentido mais amplo, a interdependência dos ecossistemas. A religação de todos os seres dentro da nossa nave mãe-terra que circula no espaço do nosso sistema solar, inserido na via láctea, uma das muitas galáxias conhecidas. Não há o ser isolado deste todo, só há o inter-ser e o inter-existir. Estamos repletos de tudo e não estamos separados. 

O que a viagem extática possibilita é esta amplitude de visão que ajuda a nos tirar dos enredos individuais e navegar em naturezas ilimitadas. Distanciados dos enredos, surgem as qualidades chamadas de incomensuráveis que são virtudes do coração. Coração que é o hospedeiro da mente, como é considerado pela medicina tradicional chinesa. A bondade amorosa, a compaixão, a alegria e a equanimidade brotam de um coração desobstruído. Os verdadeiros valores humanos! 

Os relatos de vivência do partejar mediada pelo uso da ayahuasca na tradição do Santo Daime nos dão conta de que essa experiência é tão significativa que é como se acordássemos de um sonho onde vagamos perdidos em escombros civilizatórios e uma visão clara do significado de Ser e Estar no mundo se fizesse presente.

Os relatos de vivência do partejar mediada pelo uso da ayahuasca na tradição do Santo Daime nos dão conta de que essa experiência é tão significativa que é como se acordássemos de um sonho onde vagamos perdidos em escombros civilizatórios e uma visão clara do significado de Ser e Estar no mundo se fizesse presente.

Este com certeza é um dos maiores legados da ciência dos psicodélicos. Os poetas sabem traduzir estes estados, como diz Manoel de Barros: 

[…]Para apalpar as intimidades do mundo é preciso saber: 

Que o esplendor da manhã não se abre com faca[…] 

Referências Bibliográficas 

KANDINSKY, Wassily. (2015). Do Espiritual na Arte – e na pintura em particular. Ed. Martins Fontes: São Paulo . 

JUNG, Carl Gustav. (1975). Memórias, Sonhos e Reflexões. Ed. Nova Fronteira: Rio de Janeiro. 

BARROS, Manoel de. (1993) Uma Didática da Invenção. In: BARROS, Manoel de. O Livro das Invencionices. Ed. Civilização Brasileira: São Paulo. 

NOAL, Adelise. (2015). Partejar: o mito do nascimento na Luz do Santo Daime. Editora Ramalhete: Belo Horizonte.

Arte de Fernanda Cervantes 

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