Filipe Silva Ribeiro es estudiante de Maestría en Antropología en la Universidad Federal de Paraná. Investigación desde la graduación sobre los usos y circulación del kambô (Phyllomedusa bicolor) en contextos indígenas y urbanos. Realiza trabajo de campo con los yawanawá, de quienes es amigo desde hace una década.
Filipe Silva Ribeiro é mestrando em Antropologia pela Universidade Federal do Paraná. Pesquisa desde a graduação sobre os usos e a circulação do kambô (Phyllomedusa bicolor) em contextos indígenas e urbanos. Faz trabalho de campo com os Yawanawá, com os quais mantém amizade há uma década.
A partir da literatura etnológica (Tastevin, 1925), sabemos que o uso da secreção do kambô (Phyllomedusa bicolor) é uma prática tradicional entre diversos povos indígenas, a maioria deles habitantes do sudoeste amazônico – próximo à região fronteiriça entre Brasil e Peru -, e falantes de língua pano, como os Noke Koĩ, os Yawanawá, os Matsés, os Huni Kuĩ, bem como entre alguns de seus vizinhos linguísticos (Coffaci de Lima, 2009). Os usos locais também foram registrados, em menor medida, em outras regiões da Amazônia, como entre os Tikuna habitantes da fronteira entre Brasil e Colômbia (Nimuendajú, 1952) e entre os Waiãpi habitantes da fronteira entre Brasil e Guiana Francesa (Coffaci de Lima, 2014). Nestes contextos indígenas, a substância é utilizada principalmente como estimulante para caçadores, como emético e como revigorante.
Antes de ganhar fama e se difundir a nível global, o kambô se expandiu para além dos contextos originários inicialmente entre populações caboclas e ribeirinhas, como entre alguns seringueiros que aprenderam sobre seus usos com os indígenas. De acordo com o jornalista Leandro Altheman Lopes (2000) – que acompanhou parte da expansão do kambô pelo Brasil no final da década de 90, e atualmente é meu colega de mestrado em Antropologia -, um pioneiro neste processo foi o ex-seringueiro Francisco Gomes Muniz, ou Shimbam, o qual viveu entre os Noke Koĩ nas proximidades do riozinho da Liberdade (afluente do rio Juruá, Acre) aprendendo com eles sobre a utilização da “vacina do sapo”. Posteriormente, o ex-seringueiro passa a morar em Cruzeiro do Sul e a aplicar kambô em alguns brancos com fins terapêuticos, dando início a uma reinterpretação da prática na cidade. Já na década de 90, começa a viajar por grandes cidades brasileiras aplicando kambô no âmbito de duas das principais religiões ayahuasqueiras – UDV e Santo Daime -, visto que ele mesmo era adepto de uma destas religiões.
A partir do início deste século, após a morte de Francisco Gomes, a prática rapidamente se expandiu no interior de outros circuitos neo-xamânicos e new age, especialmente aqueles ligados às “terapias alternativas”, e a substância passou a ser divulgada quase como uma panaceia, capaz de curar males de toda ordem, seja física, psíquica ou espiritual (Lima & Labate, 2007, 2008). Atualmente, o kambô circula ao redor do mundo principalmente através de terapeutas holísticos e das novas redes xamânicas centradas no uso das chamadas medicinas da floresta: ayahuasca, rapés, sananga e kambô.
Atualmente, o kambô circula ao redor do mundo principalmente através de terapeutas holísticos e das novas redes xamânicas centradas no uso das chamadas medicinas da floresta: ayahuasca, rapés, sananga e kambô.
Como é de se imaginar, o acelerado processo de expansão urbana desta prática indígena trouxe consigo questões de primeira importância envolvendo a circulação urbana de saberes tradicionais. Em 2004, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária – ANVISA proibiu a propaganda do kambô em território brasileiro, por conta de um site que divulgava eventuais benefícios decorrentes de seus usos. Pouco antes, em 2003, os Noke Koĩ encaminharam uma carta ao Ministério do Meio Ambiente solicitando a proteção de seus conhecimentos tradicionais acerca da prática, devido a sua crescente popularização nas cidades. A solicitação resultou na criação do Projeto Kampô (Coffaci de Lima, 2009; Martins, 2006), pensado para ser uma ampla frente de estudo interdisciplinar, reunindo antropólogos, biólogos, médicos, herpetólogos e os indígenas detentores dos saberes sobre a “vacina do sapo”. O projeto, contudo, não chegou a ser efetivado de fato, esbarrando em questões como: a repartição financeira equitativa de possíveis produtos advindos das pesquisas farmacológicas; a questão de propriedade de um saber compartilhado por mais de uma dezena de povos indígenas co-detentores; a falta de reconhecimento da contribuição indígena, por parte dos cientistas; entre outras (Carneiro da Cunha, 2009; Coffaci de Lima, 2009).
E a perereca?
Pois bem, muito já foi dito sobre a expansão urbana do kambô e as transformações que envolvem a prática neste processo, como podemos conferir aqui. Contudo, pouco se sabe sobre as atuais condições ecológicas da portadora da substância em si – a própria perereca Phyllomedusa bicolor – em meio à sua rápida popularização nas duas últimas décadas. Se até meados da década de 90 os usos do kambô se davam em pequena escala, pois estavam mais restritos ao âmbito de pequenas populações amazônicas, com a crescente e contínua demanda da substância por parte de setores da cena new age, se fazem necessários maiores estudos para mensurar os reais impactos ecológicos sobre a população do anfíbio, conforme anotado pela antropóloga Edilene Cofacci de Lima (2014), que trabalhou por mais de duas décadas com os Noke Koĩ e publicou uma série de artigos sobre os usos do kambô pelo grupo e as transformações decorrentes da expansão da prática.
Se até meados da década de 90 os usos do kambô se davam em pequena escala, pois estavam mais restritos ao âmbito de pequenas populações amazônicas, com a crescente e contínua demanda da substância por parte de setores da cena new age, se fazem necessários maiores estudos para mensurar os reais impactos ecológicos sobre a população do anfíbio
Para se ter uma noção do alcance da internacionalização do kambô, além dos usos em circuitos neo-xamânicos e de terapias holísticas, atualmente é possível participar de cursos promovidos por uma “associação internacional de praticantes de kambô“, ofertados àqueles que desejam tornarem-se “aplicadores urbanos” (Ribeiro, 2017). Além disso, é possível encontrar sites europeus que comercializam livremente a própria substância em si. É nesse novo contexto que surgem consideráveis desafios, como a questão da conservação da perereca em meio a essa nova demanda vinda de grandes cidades. Tendo em vista ainda a sensibilidade dos anfíbios diante de alterações ambientais, é pertinente levantar algumas reflexões a respeito, como a diferença entre os usos locais, em pequena escala, e os usos em grande escala decorrentes da expansão urbana da prática.Para tanto, vamos falar brevemente sobre o proceso de extração do veneno do kambô.
A extração do veneno
Para coletar o veneno, os indígenas costumam ir em busca da perereca normalmente pela madrugada, próximo ao amanhecer, orientando-se pelo som característico emitido pelo anfíbio, que normalmente se encontra em ramos de árvores ou arbustos nas proximidades de igarapés. Como a perereca se movimenta muito devagar, a tarefa não envolve maiores dificuldades. Uma vez encontrada e capturada, costuma-se amarrar suas patas traseiras e dianteiras em galhos alinhados, de modo que a perereca fique esticada em forma de “X”. Já nesta posição, o responsável pela coleta busca provocá-la momentaneamente para que o veneno seja expelido de sua pele, e em seguida raspa cuidadosamente a pele do animal com uma pequena haste de madeira para que a substância seja recolhida. Não é de costume retirar uma quantidade excessiva de veneno do animal, para não “esvaziá-lo” de suas defesas. Realizada a extração, a perereca é devolvida à mata e o seu veneno pode ser utilizado fresco logo em seguida ou armazenado em palhetas para uso posterior, dada a sua rápida cristalização.
Apesar do stress momentâneo, é importante destacar que nesse contexto de uso local a perereca não é exatamente maltratada, muito menos machucada durante o processo de extração. A irritação a que é submetida é feita apenas para que libere o veneno mais rapidamente, o que revela a pontualidade do processo, já que o animal nao precisa ficar muito tempo amarrado para tanto. A partir de minha experiência de pesquisador com os Yawanawá, além de uma década de amizade e algumas temporadas de convivência na TI do rio Gregório, sempre percebi muito cuidado e, principalmente, respeito ao manejar o kambô. Entre os seus vizinhos Noke Koĩ, por exemplo, Coffaci de Lima (2014) anotou que seguindo os cuidados tradicionalmente empregados na coleta, a mesma espécime pode ser submetida novamente à extração de seu veneno em torno de seis meses depois da última coleta. Além disso, a autora fez interessantes registros que reforçam esta questão dos cuidados e do respeito com o animal no contexto indígena. Conforme anotado em seu primeiro trabalho sobre o tema (Coffaci de Lima, 2005), entre os Noke Koĩ há a crença de que algumas cobras peçonhentas produzem seus próprios venenos a partir do kambô, de modo que, se alguém ferir a perereca, corre o risco de ser perseguido e picado por cobras venenosas, como uma forma de vingança destas pelos maus tratos aos detentores da “matéria prima” de seus venenos.
Ainda que uma apreciação mais rápida e superficial possa julgar este modo de extração do veneno do kambô como “violento”, devemos cuidar para não impor um ponto de vista moralista sobre o processo, reduzindo-o a uma “violência com o animal” nos moldes ocidentais. Trata-se de uma prática tradicional de povos indígenas amazônicos, os quais mantém e controlam-na de modo sustentável ao longo de séculos. Uma técnica baseada em certos tipos de manejo e relação com o ambiente que certamente não chegam a ameaçar a espécime portadora da secreção.
Bem, isso pelo menos até o momento de sua grande popularização. Se por um lado os usos locais resistiram em equilíbrio até aqui, por outro lado, a acelerada difusão urbana que se deu a partir da virada do século torna urgente mensurar os impactos ambientais sobre a perereca, como mencionado. Algumas questões nesse sentido foram levantadas por Coffaci de Lima (2015) e por mim (Ribeiro, 2017) em trabalhos recentes: Será que há “estoque” faunístico o suficiente para suprir esta nova demanda pelo veneno do kambô? Quais os caminhos percorridos pela substância até chegar aos “aplicadores urbanos”? Qual a participação e o retorno aos indígenas no processo?
Sobre alguns dos efeitos desta alta demanda, Coffaci de Lima mencionou, em comunicação pessoal (2021), o fato de que nos arredores de Cruzeiro do Sul, pequenos agricultores passaram a coletar a secreção devido aos altos lucros que podem gerar. Recentemente, durante minha própria pesquisa de mestrado sobre a circulação do kambô em contextos diversos, um rapaz não-indígena de Iquitos, Peru, me adicionou no facebook para me oferecer palhetas de kambô por 25 dólares. A diferença entre os usos tradicionais, na Amazônia, e a comercialização da substância nas cidades é evidente e precisa ser considerada.
Nesse cenário, torna-se totalmente necessário repensar a transformação de uma substância como o kambô em commodity, dado que a sociedade do consumo em que vivemos tende a reproduzir seus modelos capitalistas e imperialistas para se relacionar com substâncias, práticas e saberes “outros”. Ainda que muitos dos “brancos” atualmente envolvidos com os usos urbanos do kambô reivindiquem um suposto caráter sustentável de suas práticas, é préciso cuidar para que não sejam reproduzidas, de um outro modo, as relações de poder inerentes ao colonialismo, explorando recursos da biodiversidade amazônica que podem gerar grandes impactos nos ecossistemas locais.
Ainda que muitos dos “brancos” atualmente envolvidos com os usos urbanos do kambô reivindiquem um suposto caráter sustentável de suas práticas, é préciso cuidar para que não sejam reproduzidas, de um outro modo, as relações de poder inerentes ao colonialismo, explorando recursos da biodiversidade amazônica que podem gerar grandes impactos nos ecossistemas locais.
Sem moralismos e julgamentos, cabe refletirmos sobre: como, onde e com quem se submeter a certas experiências com determinadas substâncias, a fim de garantir, primeiramente, o acesso de povos indígenas a esse recurso inestimável da floresta amazônica, conhecido no mundo ocidental como kambô.
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Referências bibliográficas:
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______. (2009). Entre o mercado esotérico e os direitos de propriedade intelectual: o caso do kampô (Phyllomedusa bicolor). In. John Kleba e Sandra Kishi (orgs.). Dilemas do acesso à biodiversidade e aos conhecimentos tradicionais. Direito, política e sociedade. Belo Horizonte, Editora Fórum.
______. (2014). A internacionalização do kampô (via ayahuasca): difusão global e efeitos locais. In. Manuela Carneiro da Cunha, Pedro de Niemeyer Cesarino (orgs.). Políticas Culturais e Povos Indígenas. São Paulo: Edunesp.
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LIMA, E. C. de & LABATE, B. C. (2007). ‘Remédio da ciência’ e ‘remédio da alma’: os usos da secreção do kambô (Phyllomedusa bicolor) nas cidades. Revista de Antropologia Social, Campos, 8 (1) : 71-90.
LIMA, E. C de & LABATE, B. C. (2008). A expansão urbana do kampô: notas etnográficas”, in LABATE, B.; GOULART, S.; FIORE, M. (orgs.). Drogas: perspectivas em ciências humanas. Salvador: Editora da UFBA.
LOPES, L. A. (2000). Kambô, a medicina da floresta (experiência narrativa). Trabalho de conclusão de curso(Comunicação Social / habilitação Jornalismo e Editoração): ECA/USP.
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NIMUENDAJÚ, C. (1952). The Tukuna. Berkeley and Los Angeles, University of California Press.
RIBEIRO, F. S. (2017). O kambô na rede: divulgação de uma prática tradicional indígena na internet. Trabalho de conclusão de curso (Ciências Sociais): DEAN/UFPR – Curitiba.
TASTEVIN, C. (1925). “Le fleuve Muru”, La Geographie. t. XLIII & XLIV:403-422 & 14-35.
Arte de Karina Alvarez