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Como entrei para os círculos secretos de ISRSs em 1985

Através desta narrativa ficcional, Andrew Penn oferece uma imagem literária da prática farmacêutica clandestina, contando a história dos círculos dos ISRS em 1985, na cidade de Nova Iorque. Compara esta situação com a crescente popularidade dos psicodélicos e o entusiasmo pelos ensaios clínicos, que se dão de forma paralela à prática clandestina.

Andrew Penn
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Andrew Penn, MS, PMHNP es enfermero psiquiátrico, profesor en la UC San Francisco, investigador de psicoterapia psicodélica y conferenciante invitado a nivel nacional.

Andrew Penn, MS, PMHNP é enfermeiro psiquiátrico, professor na UC San Francisco, investigador de psicoterapia psicodélica e conferencista convidado a nível nacional.

Eu tinha ouvido falar sobre esse produto por meio de um amigo de um amigo. “Ricky”, meu amigo me disse, “um grande pesquisador de psiquiatria de uma universidade em Illinois está estudando esse novo medicamento, a fluoxetina”.

Não consigo nem pronunciar o nome, mas não me importo. Estou tão cansado dos remédios que o Dr. Woodchester continua testando em mim por causa do meu humor, ou do que ele continua chamando de meus “conflitos intrapsíquicos”, seja lá o que isso for…

MAS ELE TAMBÉM É MÉDICO, ENTÃO FICA EXPERIMENTANDO COMPRIMIDOS EM MIM. IMIPRAMINA, DESIPRAMINA, NORTRIPTILINA… NENHUM DELES REALMENTE FUNCIONA. TODOS SÃO HORRÍVEIS, CADA UM À SUA MANEIRA.

Quer dizer, passamos a maior parte da reunião semanal conversando sobre como me sinto pior desde a última vez que o vi. Ele é psiquiatra, então acho que devo contar a ele essas coisas, mesmo que pareçam não ter nada a ver com o que estou pensando no momento. Mas ele também é médico, então fica experimentando comprimidos em mim. Imipramina, desipramina, nortriptilina… nenhum deles realmente funciona. Todos são horríveis, cada um à sua maneira. Todos parecem ser muito bons em ressecar minha boca. Meu dentista está super contente com isso. Ele diz que a boca seca é o motivo de eu ter tido tantas cáries nos últimos dois anos.

A imipramina foi uma verdadeira alegria… não consegui cagar por dias. E não vamos começar com a clomipramina… Afinal, quem realmente se importa com orgasmos? Já nem sequer quero transar mais, porque isso, é claro, exigiria energia. O bom e velho escroto, quer dizer, o Dr. Woodpecker, sugeriu que eu tentasse um antidepressivo antigo que ia me impedir de beber vinho tinto ou comer queijo, a menos que eu quisesse correr o risco de ter um derrame. Por mais tentador que seja me matar com a ruptura de um vaso sanguíneo no cérebro, acho que prefiro ficar com os poucos prazeres que tenho, como uma boa pizza quattro formagio e uma taça de Chianti daquele lugar na West Broadway – mesmo que, desde que comecei a tomar esses remédios idiotas, tudo o que eu como pareça grudar na minha barriga.

Arte de Mariom Luna.

A depressão piorou logo após a reeleição de Reagan. Quer dizer, eu realmente achava que Mondale não tinha chance, mas a ideia de viver mais quatro anos de “luto nos Estados Unidos” realmente me deixava mal das pernas. Eu estava começando a pensar em dar aquele salto voador em frente ao trem da parte alta da cidade na Canal Street quando soube desses círculos secretos.

ESSA FLUOXETINA AINDA NÃO É LEGAL, MAS UM CARA QUE CONHECE O CARA EM ILLINOIS DIZ QUE SERÁ NOS PRÓXIMOS ANOS SE OS FEDERAIS ACHAREM QUE A PESQUISA É BOA O SUFICIENTE.

Essa fluoxetina ainda não é legal, mas um cara que conhece o cara em Illinois diz que será nos próximos anos se os federais acharem que a pesquisa é boa o suficiente. Ele diz que funciona ainda melhor do que o que eles têm agora e, por alguma razão, não deixa você gordo, com prisão de ventre e sonolento. Alguns colegas do círculo até demitiram seus analistas depois de começarem a tomá-lo por algumas semanas. Eles disseram que não viam mais sentido em conversar sobre seus problemas com um psiquiatra do Upper West Side três dias por semana e que agora gastam o dinheiro que economizam em cocaína e em festas com as mulheres. Não me entenda mal, gosto muito de Woodchester, mas realmente não sei por que ele é tão obcecado pela minha mãe.

PARA OBTER O ENDEREÇO DO PRIMEIRO CÍRCULO, TIVE QUE ESPERAR ATÉ RECEBER UMA MENSAGEM, LIGAR PARA O NÚMERO E UMA SENHORA ME DISSE PARA IR A UM ENDEREÇO EM HELL’S KITCHEN. HELL’S KITCHEN!? VOCÊ NÃO VAI PARA HELL’S KITCHEN A MENOS QUE ESTEJA QUERENDO LEVAR UMA BALA PERDIDA OU UMA DOENÇA VENÉREA, MAS EU ESTAVA DESESPERADO, ENTÃO FUI DE TÁXI ATÉ O LUGAR MAIS PERTO QUE ELE PODERIA ME LEVAR.

Para obter o endereço do primeiro círculo, tive que esperar até receber uma mensagem, ligar para o número e uma senhora me disse para ir a um endereço em Hell’s Kitchen. Hell’s Kitchen!? Você não vai para Hell’s Kitchen a menos que esteja querendo levar uma bala perdida ou uma doença venérea, mas eu estava desesperado, então fui de táxi até o lugar mais perto que ele poderia me levar. Ele disse que não vai para o oeste da Seventh Ave, então caminhei as últimas três quadras, olhando por cima do ombro para ter certeza de que não estava sendo seguido por assaltantes. Os crimes têm sido horríveis na cidade, o que só aumenta a sensação geral de tensão. Acho que os policiais nem vêm mais para essa parte de Manhattan. Embora eu não aprove o que Bernie Goetz fez, eu entendo. Não estou nem em condições de fugir, muito menos de lutar com alguém, me sinto muito mal e lento desde a última troca de medicamentos. Com essa nova droga, a trazodona, mal consigo manter meus olhos abertos.

Depois de contornar alguns ratos que estavam brigando entre si na calçada, cheguei à porta na lateral de um armazém perto da 10th Street com a West 52nd Street. “Que diabos eu estou fazendo aqui?” Pensei comigo mesmo, enquanto olhava para a porta de metal pichada. “Ah sim, respondi a mim mesmo, estou tentando não me odiar tanto.”

Bati na porta e, quando a fenda se abriu, eu disse a palavra-código “Donald Klein”, quem quer que ele fosse. O cara, agora satisfeito, abriu a porta e me deixou entrar em uma sala grande com um monte de pessoas que você não esperaria encontrar em Hell’s Kitchen, sentadas em cadeiras dobráveis em círculo. Parecia algum tipo de reunião dos AA.

“Sente-se”, me disse o cara que abriu a porta. “Estamos prontos para começar.” Tive uma rápida visão das outras pessoas na sala. Pareciam pessoas que você veria em um trem da parte alta da cidade: um cara estilo corretor de bolsa de valores com sua pasta e terno de três peças; uma senhora que poderia ter sido professora em Columbia, e até mesmo um jovem que parecia estar estudando em uma Yeshiva.

Um homem de gola alta e blazer de veludo cotelê se dirigiu ao grupo. “OK, ouçam. Fico feliz que tenham nos encontrado. A primeira coisa que vocês precisam lembrar é que não sabem onde fica esse lugar. Certo???”

Demorou alguns segundos até que percebêssemos que deveríamos responder. Eu não sei sobre essas outras pessoas, mas meu cérebro não dispara em um ritmo normal quando está sob o efeito de toda essa medicação. “Certo”, murmuramos de forma assíncrona e sem a prosódia do cara de gola alta que havia proposto a pergunta.

“Então, vai funcionar da seguinte maneira: vocês terão que vir aqui a cada três dias para pegar a pílula de vocês. Vocês vão ter que tomá-la aqui, não podemos ter esse produto circulando pelo mundo. Não achamos que seja ilegal, mas também não é legal. Está meio que… numa área cinzenta”, disse ele, rindo de sua própria piada. “O cara que fabrica as pílulas diz que ela permanece no corpo por muito tempo, então você não precisa tomá-la todos os dias.”

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A PRIMEIRA COISA É QUE VOCÊS NÃO PODEM DIZER AO PSIQUIATRA DE VOCÊS QUE ESTÃO NOS CONSULTANDO. ELES NÃO TÊM ACESSO A ESSE MATERIAL E, SE SOUBEREM DISSO, PODEM CONTAR AOS FEDERAIS E ELES PODEM RASTREÁ-LO ATÉ O LABORATÓRIO. SE ISSO ACONTECER, NINGUÉM MAIS RECEBERÁ ESSE PRODUTO. ESTOU FALANDO SÉRIO. TODOS ENTENDERAM?

O idiota de gola alta e óculos continuou: “Não estamos querendo dinheiro aqui. Nós sentimos um chamado para ajudar as pessoas, então vocês não precisam pagar. Mas precisamos que vocês façam algumas coisas. A primeira coisa é que vocês não podem dizer ao psiquiatra de vocês que estão nos consultando. Eles não têm acesso a esse material e, se souberem disso, podem contar aos federais e eles podem rastrear o laboratório. Se isso acontecer, ninguém mais receberá esse produto. Estou falando sério. Todos entenderam?” Embora ele parecesse alguém com quem meu analista poderia sair para tomar um drinque em alguma conferência psicanalítica (afinal, o que os psiquiatras bebem? Martinis? Old Fashioneds? me perguntei), havia um traço de Queens em sua voz. Quem era esse cara e por que ele estava fazendo isso?

“Agora, algum de vocês tem alguma pergunta?”

A senhora da Columbia levantou a mão timidamente: “Sim”, disse ela, com a voz um pouco acima de um sussurro.

“Ok, pode dizer”, disse o Pica-Pau Gola-Alta.

“Como essa pílula vai me fazer sentir? Já tomei todos os outros medicamentos que existem – imipramina, clomipramina, doxepina – e só o que eles fazem é me deixar lenta, sonolenta e burra. O que a fluoxetina me fará sentir?”

Gola-Alta olhou para o homem corpulento que havia nos deixado entrar na sala. “Quer lhes contar, Rocco?”

“Melhor do que ‘bem’ “, respondeu Rocco em um staccato compacto. “Eu costumava passar o dia todo sendo o que meu psiquiatra chamava de ‘neurótico’, agora, simplesmente não dou a mínima.” Ele pontuou suas palavras com um encolher de ombros largo e um sorriso malicioso.

“ESSA PÍLULA AQUI?”, DISSE ELE, SEGURANDO A CÁPSULA VERDE E BRANCA ENTRE O POLEGAR E O INDICADOR E ERGUENDO-A PARA O CÉU COMO SE FOSSE UMA OFERENDA AOS DEUSES, “CORRIGE O DESEQUILÍBRIO”.

“É isso mesmo”, disse o cara de gola alta, “melhor do que ‘bem’. Os químicos acham que ela vai acabar com a psicanálise. Bastardos gananciosos, seria bom para eles. Sentados o dia todo, sendo pagos para ouvir as pessoas reclamarem. Veja bem, os caras que tiram esse produto do laboratório às escondidas em suas lancheiras dizem que a empresa que fabrica esse produto parece achar que a depressão é realmente causada, não por sua mãe, mas por um desequilíbrio químico. E essa pílula aqui?”, disse ele, segurando a cápsula verde e branca entre o polegar e o indicador e erguendo-a para o céu como se fosse uma oferenda aos deuses, “corrige o desequilíbrio”.

Não fui o único que soltou um pequeno suspiro diante da maravilha dessa possibilidade.

“Mas espera um pouco”, interrompeu o terno de três peças de repente. “Se essa coisa é tão poderosa, tem algum risco de que ela possa deixar você, sabe como é, psicótico?”

“Boa pergunta”, respondeu o cara de gola alta. “Você sabe que em lugares como Bellevue eles usam antipsicóticos, como o Thorazine, né? Pois é, eles acham que essa coisa vai ser chamada de antineurótico! Agora vamos ver se ele vai curar o Woody Allen!”

Houve um suave murmúrio de riso que emerge de um grupo de pessoas deprimidas, mas todos continuaram olhando para o chão.

“Agora”, disse o terapeuta, “vamos todos tomar nossos comprimidos e sair daqui, um de cada vez. Não fiquem perambulando, não falem uns com os outros quando saírem, não falem com mais ninguém, a gente se vê de volta aqui na quarta-feira. Capito?” Com um aceno de cabeça, Rocco entregou a cada um de nós um pequeno copo de papel contendo um único comprimido, verde-escuro e branco, como uma esmeralda não cortada. Com a outra mão, ele nos deu um copo de água. Engolimos o comprimido, jogamos os copos em um cesto de lixo enferrujado e saímos, um de cada vez, conforme as instruções.

E foi assim que entrei para o círculo secreto de ISRSs da cidade de Nova York em 1986.

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A história é, obviamente, fictícia. Não creio que houvesse reuniões clandestinas de círculos de medicamentos antidepressivos nos anos 80 ou que a fluoxetina estivesse vazando sorrateiramente dos laboratórios da Eli Lilly. Mas se os ISRSs (inibidores seletivos da recaptação de serotonina) fossem tão badalados quanto os psicodélicos são agora, talvez houvesse. Não consigo me lembrar de uma época em que um tratamento fosse tão esperado quanto os psicodélicos estão sendo neste momento. O que me fascina é que essa empolgação nunca vista antes se refira a medicamentos em testes clínicos que ainda estão a pelo menos 2 a 5 anos de distância da disponibilidade legal.

Para além da sua utilização de longa data em culturas indígenas, a medicalização dos psicodélicos não é um fenômeno novo, mas sim um retorno a uma prática que já estava presente. Lembre-se que o LSD era fabricado por uma empresa farmacêutica, a Sandoz, e explorado como um tratamento para transtornos relacionados ao uso de substâncias e “neuroticismo” antes de ser sequestrado pela Lista 1 da Lei de Substâncias Controladas em 1970. Além disso, o constante burburinho da mídia (o que alguns chamaram de “Efeito Pollan“) aumentou o clamor por esses medicamentos antes que eles concluíssem os testes clínicos em andamento para se tornarem medicamentos aprovados pela FDA (Food and Drug Administration). As pessoas não estão esperando pela FDA; elas estão indo para o exterior, onde esses compostos são legais, ou estão indo para a clandestinidade, onde profissionais que arriscam sua própria liberdade oferecem tratamento com essas substâncias atualmente ilegais.

Ao escrever essa peça de ficção, li o texto de referência de Peter Kramer, Listening to Prozac. Escrito em 1993, apenas cinco anos após a aprovação do Prozac (fluoxetina), Kramer reflete sobre a revolução dos ISRSs na psicofarmacologia; sua relativa segurança (em comparação com a toxicidade letal de uma overdose de antidepressivos tricíclicos) e tolerabilidade (era desprovido dos efeitos colaterais anticolinérgicos de seus antecessores, reclamados pelos personagens desta história) o tornaram onipresente. Quando passou a ser amplamente prescrito, tornou-se um tropo cultural bem conhecido, uma espécie de Soma huxleyana. Mas o que realmente fez do Prozac um fenômeno não foi sua segurança ou a ausência de efeitos colaterais; foi a promessa de alívio e mudança que ele trouxe. Kramer superestimou o poder do Prozac de mudar nossos traços de caráter indesejáveis e neuroses irritantes (algo que ele depreciou como “psicofarmacologia cosmética”), mas vejo algumas das mesmas alegações de alívio generalizado sendo feitas para os psicodélicos agora, levando algumas pessoas a não esperar até que essas drogas se tornem legalmente disponíveis. Em vez disso, procuram tratamento na clandestinidade.

É interessante notar que, mais tarde, Kramer retirou algumas de suas críticas ao Prozac em seu livro posterior, Against Depression (2005), no qual ele reconheceu algo que é bem conhecido por seus portadores: a depressão é real e deve ser tratada para aliviar o sofrimento. Nesse livro, ele reconhece que os ISRSs, como a maioria dos tratamentos em psiquiatria, não correspondem ao seu entusiasmo inicial quando se tornam mais amplamente disponíveis. Por que isso acontece? Talvez, uma vez na prática, os tratamentos sejam administrados a pessoas mais complexas e mais doentes do que nos ensaios clínicos, pessoas que têm várias comorbidades que impedem que os medicamentos funcionem tão bem quanto funcionavam para indivíduos selecionados em um ensaio clínico. Talvez a dificuldade de acesso a um tratamento antes que ele esteja amplamente disponível amplifique a esperança embutida em cada tratamento (o que às vezes chamamos de parte do “efeito placebo”). Talvez seja humano imaginar que a próxima coisa funcionará melhor do que o que temos agora. Mas, independentemente disso, uma vez que o tratamento esteja disponível, as esperanças iniciais tendem a se dissipar, e o novo e brilhante acessório do kit de medicamentos se torna apenas mais uma ferramenta a ser usada na luta lenta e constante contra a doença mental. Será que o mesmo acontecerá com os psicodélicos? Só o tempo dirá.

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Nota: Este artigo foi publicado originalmente em inglês no site do Chacruna Institute.

Tradução de Paula Bizzi Junqueira.
Capa de Pedro Mulinga.

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