Introdução
O presente texto reflete sobre um tipo particular de educação ocorrida a partir do consumo de determinadas plantas tidas como sagradas em função de potencializarem conexões com o divino ou inspirarem respeito e devoção.
Ao longo da história, conhece-se diversas plantas ou substâncias que possuem o status de sacramento. Neste artigo, ressalto a ayahuasca, beberagem psicoativa de origem indígena preparada a partir de três elementos naturais: O cipó (Banisteriopsis caapi), a folha (Psychotria viridis) e água, sendo conhecida por uma diversidade de nomes, dentre os quais: natema, yagé, nepe, kahi, caapi, nixi pae, shori, kamarampi, cipó, além de vegetal, daime e outros.
No início do século XX, no chamado período da borracha em que muitos nordestinos penetraram a floresta amazônica brasileira, o uso da ayahuasca deslocou-se do contexto indígena em direção às populações mestiças dos centros urbanos, dando origem às religiões ayahuasqueiras que tem o consumo desta bebida no centro de seus rituais, como é o caso da religião do Santo Daime.
A ayahuasca é, nesse sentido, utilizada tanto por grupos indígenas quanto pela população mestiça ou cabocla da Amazônia, bem como por diversos sujeitos dos centros urbanos, em diferentes Estados do Brasil e do mundo, com finalidades variadas: medicinais, religiosas, estéticas, divinatórias, pedagógicas, dentre outras. Neste artigo, chamo atenção para a dimensão pedagógica da ayahuasca, na medida em que é considerada pelos grupos usuários uma planta professora, portadora de inteligência com a qual é possível travar contato e obter conhecimentos.
A pedagogia das plantas como uma pedagogia cultural
A ayahuasca tem sido objeto de pesquisas sob difenciados ângulos do conhecimento, a exemplo da abordagem médica, antropológica, ambiental, psicológica, jurídica, dentre outras. Ao ressaltar o âmbito pedagógico, parto do pressuposto de que se trata de uma planta professora capaz de engendrar situações de aprendizagens.
O conceito de “plantas professoras” foi proposto, originalmente, pelo antropólogo Luis Eduardo Luna (2002), em seus estudos sobre as práticas de vegetalistas ribeirinhos usuários da ayahuasca na Amazônia peruana. Para o autor, sob certas condições, algumas plantas que abrigam em si espíritos sábios teriam a faculdade de “ensinar” as pessoas, permitindo o acesso a uma mutiplicidade de conhecimentos.
A pedagogia das plantas professoras tem sido, contudo, negligenciada tanto pelas pesquisas sobre psicoativos, quanto pela ciência pedagógica clássica (a Pedagogia). Esta, quando pensa a educação tende a reduzir seu sentido ao território da escolarização formal, da escrita, dos livros e do professor em sua forma humana configurando o chamado “escolacentrismo pedagógico”.
Esta restrição do conceito de educação ao âmbito escolar tem sido responsável pelo silenciamento, subalternização ou epistemicídio de uma diversidade de formas de aprender que informam modos de ser e estar no mundo, como é o caso das pessoas que tem nas plantas professoras uma mediadora de saberes. Em vista disso, tais experiências de aprendizagens tendem a ser produzidas como ausentes ou, quando aparecem, estão comumente envoltas em situações de preconceitos e ignorâncias múltiplas. Por esse motivo, a importância de uma “sociologia das ausências” (Santos, 2008), no sentido de denunciar esta ausência e, ao mesmo tempo, tornar presente as experiências de comunicação e aprendizagem inspiradas pelo consumo da ayahuasca.
A concepção das plantas como educadoras requer, entretanto, profunda revisão da própria Pedagogia, de seus sentidos e entendimentos acerca do “educativo” ou da natureza do educar, de modo a reconhecer a existência de processos educativos ou de pedagogias que extrapolam, amplamente, territórios escolarizados.
Segundo Wortmann et all (2015), o livro Places of Learning (Lugares de Aprendizagem) de Elizabeth Ellsworth (2005), ao ressaltar a dimensão pedagógica da vida social contemporânea, contribui para ampliar o olhar sobre variados espaços culturais como lugares de educação, bem como para o entendimento das relações de ensino e aprendizagem como amplos processos culturais. Está em jogo uma noção de pedagogia não em relação ao conhecimento como uma coisa pronta, mas como construção e processo. Assim, museus, cinemas ou mesmo a arquitetura acionam uma pedagogia que produz efeitos na construção de subjetividades e na autoaprendizagem de cada sujeito. Segundo essa pespectiva, vivemos em uma sociedade permeada pelo pedagógico na qual somos constantemente submetidos a processos contínuos de educação mediados por diferentes instituições e espaços ativamente implicados com práticas e experiências que visam ensinar alguma coisa.
Considerar a existência de relações de ensino e aprendizagem em diferentes nichos sociais regulados pela cultura, permite, assim, entendimentos alternativos sobre pedagogia abrindo possibilidades para se considerar espaços como quintais, terreiros ou igrejas como pedagógicos. É o caso da religião do Santo Daime em que ao ingerir o daime (ayahuasca) as pessoas dizem aprender coisas.
A educação mediada pelo daime
A religião do Santo Daime pode, assim, ser interpretada como um espaço educativo no qual circulam saberes fundamentais na construção da identidade dos sujeitos envolvidos e na sobrevivência de suas tradições. Dentre os muitos saberes, destaco os saberes religiosos, medicinais, ambientais, cognitivos, estéticos, filosóficos (Albuquerque, 2012). Os saberes religiosos implicam, em geral, a aprendizagem de que existe algo superior além da matéria que influe em nosso ser; os saberes medicinais informam sobre saúde/doença/ medicamentos; os saberes ambientais referem-se a conhecimentos sobre a fauna, a flora ou à preocupação com o meio ambiente; os cognitivos implicam aprendizagens como saber ler ou aprender línguas; os estéticos referem-se a habilidades artísticas como pintar, desenhar ou tocar instrumentos musicais e os filosóficos a uma capacidade de fazer indagações fundamentais sobre o sentido da vida ou a condição humana.
Mas, como caracterizar a pedagogia da ayahuasca? Uma especificidade fundamental é o fato de que o professor não é um ser humano, como tradicionalmente contumamos pensar a figura do professor, mas um vegetal (ou plantas que, combinadas, produzem a ayahuasca). Cabe ressaltar, contudo, que as plantas não ensinam a si mesmas, posto que precisam de um humano para se atualizarem. A ayahausca é, nesse sentido, uma co-professora, isto é, alguém que ensina com, implicando uma espécie de ecologia humano-planta.
Outras características importantes para que a ayahuasca atue como educadora, são: o ambiente em que se processa o consumo da bebida que, em geral, pressupõe lugar limpo, calmo e silencioso; o guia ou dirigente responsável por administrar a bebida aos participantes que deve ter conhecimento do que está fazendo; o estado psicólogico da pessoa ao tomar a bebida que deve ser de tranquilidade e entrega à experiência. Considera-se, ainda, a importância de se fazer previamente uma dieta física (alimentação leve) e psicólógica (manter a mente serena, por exemplo).
No caso particular do uso da ayahausca no contexto da religião do Santo Daime, prima-se também pela harmonia do canto e da música como mediadores do processo educativo. Trata-se, assim, de uma educação estética pautada na oralidade e no cantar de hinos que remetem a um conjunto de conteúdos educativos. Esse conteúdo, em geral, comporta ensinamentos sobre a história da religião, ensinamentos ético-morais, normas para o bem viver, invocações de forças curadoras, louvor à natureza e às divindades de diversos panteões religiosos configurando, com isso, uma prática educativa intercultural e inclusiva pois, como assevera um hino da doutrina, “O sol que veio à terra para todos iluminar, não tem bonito nem feito, ele ilumina todos iguais”.
Como em todo processo educativo, na pedagogia da ayahuasca também está presente o elemento disciplinador através dos hinos que disciplinam a conduta dos que não cumprem as exigências éticas ou os ensinos da doutrina afinal, conforme assevera um outro hino: “Também não é só
tomar daime, sem prestar bem atenção”. É o que se chama de “peia”, exemplificada nas situações de mal estar, frio, vômito ou diárreias possíveis de serem vivenciadas durante o ritual de consumo da ayahuasca (daime).
Ao lado dessas condições de aprendizagens, insiro ainda duas outras que também me parecem fundamentais para que os saberes da ayahuasca sejam apreendidos. São elas: a qualidade da bebida e o papel do feitor. Estudos etnobotânicos sobre as plantas que compõe a ayahuasca reconhecem a existência de diversas espécies de cipó que, ao serem ingeridas, acarretam no organismo efeitos variados. Assim, conforme o tipo de cipó e quantidade de folhas envolvidos na feitura da bebida tem-se um determinado resultado. Desse modo, o conhecimento das espécies e o domínio da ciência do preparo pelo “feitor”, bem como dos processos de armazenamento são características outras que, ao meu ver, podem comprometer a qualidade da bebida e, consequentemente, a qualidade da aprendizagem.
Reflexões finais
As características acima arroladas permitem compreender que estamos diante de uma modalidade única de educação, mediada pelas plantas ensinadoras, que transcende, em muito, a pedagogia ocidental moderna assentada em critérios lógico-intrumentais. Na pedagogia cultural da ayahuasca, de nada adiante a escrita, os livros, as teorias ou os títulos acadêmicos pois as lições da ayahuasca não estão inscritas em caracteres matemáticos e positivistas. Como assevera certo hino da doutrina: “não adianta querer chegar aqui formado, pode as lições deste livro você não ter estudado”. Trata-se de uma pedagogia do silêncio, onde estão em causa a sensibilidade, corporeidade, quietude da mente, a beleza da música e do canto, a harmonia do ambiente, aentrega íntima à experiência.
Caem por terra também toda sorte de dicotomias típicas da ciência moderna que opõe humano x não humano, natureza x cultura. A ciência pedagógica da ayahuasca tem, assim, seus próprios critérios de inteligibilidade, sua própria episteme fincada, histórica e culturalmente, nas tradições indígenas que não operam através de dualidades sendo, por isso mesmo, uma episteme decolonial ou “pós-abissal”, no sentido de ir além dos abismos e dicotomias instituídos pelo pensamento moderno ocidental (SANTOS, 2009).
A pedagogia da ayahuasca está, assim, assentada em uma espistemologia transgressiva à lógica ocidental moderna na medida que, ao ampliar a noção de alteridade para além do humano, admite a ecologia entre humanos e plantas, reconhecendo a agência das plantas e a consequente capacidade de produzirem saberes e subjetividades.
Referências
ALBUQUERQUE, M. B. (2012). Epistemologia e Saberes da ayahuasca, Belém: FCTN.
ELLSWORTH, E. (2005). Places of learning: media, architecture and pedagogy. New York: Routledge.
LUNA, L. E. (2002). Xamanismo amazônico, ayahuasca, antropomorfismo e mundo natural. In B. C. Labate & W. S. Araújo (Orgs.). O uso ritual da Ayahuasca (pp. 179-198). Campinas: Mercado das Letras; São Paulo: FAPESP.
SANTOS, B. S. (2008). A Gramática do Tempo: para uma nova cultura política (2ª ed). São Paulo: Cortez. (Col. Para um novo senso comum, vol. 4).
______. (2009). Para além do pensamento abissal: das linhas globais a uma ecologia de saberes. In: B. S. Santos & M. P. Meneses (Orgs.). Epistemologias do Sul (pp. 23-71). Coimbra, Pt: Edições Almedina.
WORTMANN, M. L., COSTA, M. V. & SILVEIRA, R. H. (2015, jan./abr.). Sobre a emergência e a expansão dos Estudos Culturais em Educação no Brasil. Educação, 38(1), 32-48.