Pintura de Clancy Cavnar, The Mantle of Santa Maria, 2015
Escute aqui o Hino “Santa Maria”, de Odemoir Raulino da Silva, hinário “Daime Sorrindo”
Escute aqui o Hino “Forças da Rainha da Floresta”, de Irineu Barsé
A revelação
Há pouco mais de 40 anos, em uma comunidade de campesinos em meio a floresta amazônica brasileira, o velho curandeiro Sebastião Mota recebeu uma inesperada revelação divina. Esta ocorreu quando Sebastião Mota fumou a planta “Cannabis” no dia seguinte de uma cerimônia do Santo Daime, religião nascida em meados da década de 1930, que consagra a bebida “Ayahuasca” pelo nome de “Daime” ou “Santo Daime”.
É dito que a planta foi-lhe apresentada por “marijuana”, mas Sebastião já a conhecia através dos meios de comunicação como a “erva do diabo”, devido supostos poderes de degenerar a moral e ética de quem a fumasse. Sebastião Mota ouvira certa vez pela rádio, que o ladrão assoprava a fumaça debaixo das portas das casas para que seus moradores ficassem lesados e assim, poder roubá-los facilmente. Mas questionava-se do por que o ladrão não ficava também lesado? Havia algum segredo, pensava! [1]
O encontro com a planta se deu quando um hippie e ex-seminarista católico o procurou por ser o velho curandeiro, seu guia espiritual em sua iniciação no Santo Daime. Chamando-o portanto por “Padrinho Sebastião”. Este jovem hippie foi confessar-se ao seu Padrinho da pungente culpa que o atormentara durante todo o ritual, a de gostar de fumar aquela “droga” e ainda cultivá-la dentro da igreja. Assim, as entregou e pediu por seu perdão, dizendo que nunca mais voltaria a pecar fumando-a. [1]
O Padrinho Sebastião tão logo viu a erva lembrou-se de um sonho, no qual uma entidade montada sobre um cavalo branco aproximara-se e avisa-lhe que ele mudaria de linha espiritual. Sebastião perguntou sobre para qual linha. O cavaleiro então respondeu que ele saberia por si próprio. Na sequência do mesmo sonho, Sebastião segue por um caminho e chega em um roçado com arbustos desconhecidos. Neste local encontrava-se outra entidade que o convida para se aproximar, pega um ramo dos arbustos e a entrega para Sebastião, dizendo: “- esta é para curar!”. [1]
Sebastião Mota viu semelhanças entre aquela pequena planta do hippie, considerada motivo de crimes e destruição de famílias, com o ramo verde da lembrança de seu sonho. Decidiu então experimentá-la com o máximo de atenção.
Em suas primeiras experiências com a controversa plantinha, o velho Sebastião conclui ter desvelado uma grande mentira e que esta devia ser desfeita. Percebeu que através daquele arbusto também poderíamos comunicar-se com os seres espirituais e principalmente, estabelecermos uma via de diálogo com a “Virgem Soberana Mãe”, Santa Maria, como é conhecida na tradição católica. Contato este, semelhante aos que já ocorriam com o Senhor Jesus Cristo, que manifestava-se para qualquer um através da bebida Ayahuasca nos rituais do Santo Daime. [1]
Portanto, diante desta revelação, Sebastião e outros moradores da comunidade iniciaram estudos devocionais diários com a planta. Logo estabeleceram práticas ritualísticas semelhantes das anteriormente ensinadas por Mestre Irineu para o consumo da Ayahuasca, batizada por Daime ou Santo Daime. Mestre Irineu é o fundador do Santo Daime e é identificado por parte de seus devotos como a reencarnação de Jesus Cristo.
Nestes estudos a planta Cannabis também foi rebatizada e em congruência ao que seu nome popular marijuana já indicava, nas lembranças dos nomes de “Maria”, mãe do Mestre Jesus, e de “Joana”, mãe do Mestre Irineu. O novo sacramento foi logo equiparado em notoriedade com a já santificada Ayahuasca. Sendo a santa bebida de domínio do “Pai” identificado ao Mestre Jesus, ou ao Mestre Irineu, e a santa fumaça de regência de sua “Mãe”. Estando as duas substâncias em completa harmonia quando unidos ao corpo de seus filhos cristãos. Sebastião Mota explica que se temos um pai, também teríamos uma mãe e se o pai não acolhe o filho, é a mãe quem pode dar seus cuidados. Sendo manifestados na natureza pelo Santo Daime e por Santa Maria [2].
Conflitos com a “lei dos homens”
Padrinho Sebastião sofreu forte reprovação dos devotos de Mestre Irineu que viviam em outras comunidades devido a inserção da “droga proibida” nos cultos [3]. Defendia-se afirmando que não poderíamos amar apenas uma parte da natureza e menosprezar as outras. Como disse certa vez: “se eu gosto de um e não gosto de outro, eu sou contra alguma coisa da natureza, ela só pode vir contra mim e aí todos nós vamos sofrer, porque ninguém pode com ela e ela pode com tudo” [1].
No entanto, a inserção deste novo sacramento também trouxe a intensificação dos conflitos com as autoridades externas, que já repudiavam suas práticas por as considerarem “feitiçarias”.
Em 1981, após a apreensão de um membro do Santo Daime com flores de Santa Maria, a polícia invadiu a comunidade de Sebastião Mota e queimou seus santuários, causando grande comoção por parte dos devotos, que choravam e rezavam ante a violência militar. [1]
O fato teve repercussão nos grandes meios de comunicação do país, com produção de reportagens que reforçavam ainda mais o medo generalizado das drogas e de “seitas”, criando até mesmo alarmismos como a possibilidade de um suicídio coletivo dos religiosos. Uma equipe de especialistas foi designada pelo governo para investigar a religião. Apesar dos apontamentos médicos e antropológicos favoráveis, foram proibidos tanto os cultos de Santa Maria, como também os de Santo Daime (Ayahuasca) em todo o país. [4]
Após negociações dos vários grupos religiosos que consumiam a Ayahuasca com as autoridades militares, a Ayahuasca foi reconhecida legalmente em 1986 para seus usos religiosos, no entanto, os cultos com Santa Maria foram mantidos ilegais [4]. Sebastião Mota faleceu poucos anos depois. A maior parte das muitas comunidades de Santo Daime que ajudou a abrir pelo Brasil passaram a ocultar a devoção e os ritos de Santa Maria para os leigos, sendo até mesmo interrompido cultos por um período devido demais ações policiais.
Resistência cultural
Em recente pesquisa multimetodológica que realizei sobre as representações sociais desenvolvidas para a planta Cannabis na religião do Santo Daime, pude vivenciar não só o estado da resistência de seus cultos com Santa Maria, como também perceber alguns dos desdobramentos da revelação de Santa Maria para a religião. [2]
A planta Santa Maria no Santo Daime adquire as representações populares da entidade católica Santa Maria, resultando em uma forma de materialização das suas dádivas. O que reforça ainda a sua percepção para além das bases materiais da planta, visto os relatos de recebimentos de “milagres” e “arrebatamentos” em sua devoção. [2]
A tradição diz que a Mãe Santa Maria escuta as súplicas de seus filhos devotos e intercede por seus perdão no “dia do juízo” ante o pai e filho, Jesus Cristo. Assim, na consagração ou convocação de Santa Maria é a entidade que chega como uma advogada em socorro dos momentos de aflição ou apuro.
Suas principais ações são descritas nos cânticos sagrados. Nestes, Santa Maria chega com sua “luz”, que afasta os espíritos trevosos, os sentimentos de agonia, medos e todo tipo de dores. Ainda promovendo diversas curas e sensações de proteção, conforto, amor e alegria, o que facilitariam os processos de mirações quando sob efeito da Ayahuasca. Santa Maria, portanto, age como uma chave de auxílio na “porta de entrada” ao divino. [2]
Ritos e disciplinas
Logo foram estabelecidas normas ritualísticas para este contato com a divindade, estes vão diferenciar um tempo e um espaço sagrado próprio dos demais usos profanos da planta.
Primeiramente, o neófito que já fumou a marijuana realizará uma espécie de rito de purificação. Aprenderá a controlar algum possível vício e afastar espíritos que aproveitam-se de seu corpo para obter “drogas”. O rito inicia-se com uma pausa de 2 dias de ingestão da planta, voltando a consumi-la apenas no 3º dia, seguido de outra pausa de 6 dias, voltando a consumi-la somente no 7º dia. As pausas seguem os intervalos de 14 dias, 20 dias e por fim, 30 dias. Ao término dos 77 dias entre consagrações e “dietas”, acredita-se que Santa Maria tem reservado uma revelação ao devoto. O sucesso de sua disciplina o deixaria apto para consagrá-la, protegido dos “espíritos vagabundos” e pronto para escutar seus ensinos e receber suas graças. [2]
Também houveram ritualizações para o momento de sua consagração. O devoto deverá fazer seu benzimento pessoal, normalmente um “sinal da cruz”; dar apenas três tragadas, sendo uma ofertada ao Sol, outra à Lua e a última para as Estrelas; e passá-la ao “irmão” ao seu lado direito. Fazendo que Santa Maria gire até ser completamente ingerida e igualmente por todos. Seu consumo ritualístico é realizado com orações, cânticos devocionais de temática cristã, seguidos de períodos de meditação em silêncio, ou simplesmente, quando fora dos ritos, deve-se manter a conversa em elevado teor espiritual. Para os locais de cultivo do sacramento, chamados por “Jardins de Santa Maria” devem ser zelados por pessoas de conduta moral e ética exemplar. Sendo demarcados por algum objeto ou traçado de símbolos da religião, com suas sementes germinadas na lua nova e suas flores colhidas apenas na lua cheia. [5]
Também ocorrem ritos de curas de Santa Maria, estes são considerados muito fortes, mesmo quando realizados sem a consagração conjunta da Ayahuasca. Colhi relatos de devotos que após estas cerimônias apenas com a Santa Maria, nunca mais voltaram a consumi-la, mesmo sendo usuários antigos da erva em contextos não religiosos [2].
Apesar da proibição, o Santo Daime preserva mais de 40 anos de resistência de suas práticas desenvolvidas com a Cannabis. As normas proibitivas para as diversas substâncias seguem as representações sociais próprias de uma população [2]. Podemos observar países, como Estados Unidos ou Uruguai, que já toleram variados usos da Cannabis mas que ainda guardam rígidas restrições às práticas com a Ayahuasca e vice-versa. O velho curandeiro Sebastião Mota declarava que: “(…) como o Santo Daime, ela esta sendo agora perseguida, mas tenho esperança que ela seja liberada dentro do culto”. Esperança de que as demais autoridades reconheçam os estudos realizados por suas comunidades e respeitem seus conhecimentos reservados.
Referências
1- Lúcio Mortimer, “Bença, Padrinho” (São Paulo: Céu de Maria, 2000).
2- Ubirajara Ferreira Júnior, “Representações sociais da planta Cannabis na religião do Santo Daime: entre a sagrada Santa Maria e a proibida maconha” (Mestrado em Psicologia Social na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, 2017) 202p.
3– Sandra Goulart, “Contrastes e continuidades em uma tradição religiosa amazônica: os casos do Santo Daime, da Barquinha e UDV” in Labate B.C.; Goulart, S.L. (orgs.) O uso ritual das plantas de poder (Campinas: ed. Mercado de Letras, 2005), 355-396.
4– Beatriz Labate, “Dimensões legais, éticas e políticas da expansão do consumo da Ayahuasca” in Labate B.C.; Goulart, S.L. (orgs.) O uso ritual das plantas de poder (Campinas: ed. Mercado de Letras, 2005), 397-458.
5- Edward MacRae, “Santo Daime e Santa Maria: usos religioso de substâncias psicoativas lícitas e ílicitas” in Labate, B.C.; Goulart, S.L. (orgs.) O uso ritual das plantas de poder (Campinas: ed. Mercado de Letras, 2005), 459-489.
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Leia a dissertação do autor sobre a Santa Maria: